O terreno da política é dos políticos, não dos juízes

José Manuel Fernandes Público, 05/04/2013

Decidir sobre a equidade de uma medida será sempre uma decisão política, mesmo se tomada pelos juízes do TC

Não penso que seja saudável colocar os destinos de uma democracia nas mãos de juízes. Sobretudo não é saudável que isso suceda quando estão em causa assuntos correntes que são, na sua essência, políticos e não jurídicos. No entanto é nessa posição que estamos. Em parte por omissão irresponsável dos políticos - refiro-me à remissão para os tribunais dos esclarecimentos sobre o sentido profundo da lei de limitação de mandatos autárquicos. E em parte por vontade de prolongar num tribunal um debate que se devia ter confinado à Assembleia da República - e invoco neste caso o recurso ao Tribunal Constitucional para derimir as querelas do Orçamento do Estado. O poder político não é um poder absoluto - mesmo quando existe uma maioria absoluta - e os tribunais existem como forma de limitar esse poder, obrigando-o a respeitar a lei. Mas já não deviam existir como instância de substituição do poder político, tomando por ele as decisões.
O que se está a passar em torno da interpretação da lei de limitação de mandatos é uma imensa vergonha que ameaça tornar-se numa ainda maior trapalhada. Como já começa a ser evidente, vários tribunais e vários juízes vão produzir sentenças contraditórias, pois a letra da lei é equívoca e a tentação de cada juiz levar ao limite o seu entendimento de que é um poder soberano é enorme. Não consigo descortinar um só bom motivo para os partidos não terem querido proceder à clarificação das suas intenções, só imagino maus motivos. E, no entanto, se nos abstraíssemos do cálculo político imediato - isto é, das nossas apreciações pessoais sobre os diferentes autarcas que querem mudar de município -, julgo que seria relativamente fácil chegar a um consenso.
O princípio da limitação de mandatos é um velho princípio republicano, pois até já existia na República romana, onde os cônsules eram eleitos apenas para o mandato de um ano e não podiam ser reeleitos no ano seguinte. O principal motivo pelo qual se aceita a limitação de mandatos como um bom princípio republicano é que ela controla a possibilidade de alguém se eternizar no poder por dispor de uma grande vantagem pessoal sempre que se disputam eleições. No fundo este princípio procura repor a igualdade à partida entre diferentes candidatos e garantir que se cumpre o critério apontado por Karl Popper como definidor de uma democracia saudável, o de que deve ser sempre possível remover pacificamente aqueles que ocupam o poder. Ao contrário do que muitas vezes se diz e escreve, este princípio nada tem a ver com a prevenção da corrupção - basta pensar que, nos Estados Unidos, ele só foi introduzido na Constituição depois dos quatro mandatos sucessivos de Roosevelt - e ainda menos com a ideia espúria de que não deve haver políticos profissionais.
Dito isto, parece-me que se existe uma vantagem clara dos autarcas que se recandidatam nos seus municípios, essa vantagem diminuiu muito quando se candidatam a outra autarquia. Por isso não me parece fazer sentido pretender impor o princípio da limitação de mandatos a toda e qualquer autarquia, a não ser que se assuma que aquilo que se pretende combater é a transferência de um eventual tráfico de influências. Mas se for esse o caso, então assuma-se que se acha que esse é o problema (e também que os presidentes de câmara são o rosto mais evidente da corrupção dos políticos). Mesmo estando frontalmente contra algumas das candidaturas dinossáuricas - arrepia-me especialmente a de Luís Filipe Menezes -, não acho que deva ser na secretaria dos tribunais que se resolvem estas batalhas eminentemente políticas.
Mais complexa é a questão da decisão do Tribunal Constitucional sobre o Orçamento do Estado. E é mais complexa porque, neste caso, não está em causa a sua legitimidade para se pronunciar sobre a constitucionalidade de uma lei saída do Parlamento - o que me parece estar em causa é saber se vai tomar uma decisão constitucional ou uma decisão política mascarada de fraseologia jurídica. O ano passado, por exemplo, tomou uma decisão claramente política, como já aqui escrevi e critiquei.
Vejamos um caso concreto. A Constituição prevê que "o imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo", pelo que se a maioria tivesse aprovado um imposto de taxa única ("flat tax") como a existente nalguns países europeus isso seria inconstitucional, mesmo podendo corresponder a uma opção ideológica legítima. Já pretender avaliar se o desiderato constitucional sobre o IRS se configura em cinco ou em oito escalões, como pretendem alguns dos queixosos, resultará sempre numa intromissão da área do político, senão mesmo na da pura técnica fiscal.
Feita esta distinção, como avaliar o caso dos cortes nos salários dos funcionários públicos e dos pensionistas? De acordo com a doutrina do Tribunal Constitucional, e se nos recordarmos do acórdão do ano passado, não está em causa nenhuma norma muito concreta do texto constitucional, antes um seu princípio geral, o da igualdade. O que o Tribunal Constitucional apreciou, e vai voltar a apreciar, não é pois, na minha perspectiva, um problema jurídico ou mesmo uma norma constitucional de leitura cristalina, antes a forma como o OE distribui os sacrifícios decorrentes da situação de emergência financeira. É difícil imaginar um juízo mais político, pois é exactamente a partir de juízos deste género que se faz todo o Orçamento do Estado. Pode-se concordar ou discordar da forma como a actual maioria está a distribuir a austeridade, mas não se devia transferir esse debate do seu lugar próprio, a Assembleia da República, para um lugar impróprio, o Tribunal Constitucional. Nem se devia procurar mistificar o debate, dizendo que é jurídico o que é eminentemente político.
(Apenas uma nota: de todas as normas enviadas para o Tribunal há uma que me suscita dúvidas, não pela sua existência, mas pela sua forma. Refiro-me à contribuição extraordinária de solidariedade que recai sobre os pensionistas que recebem mais de 1350 euros, cuja progressividade é tão brutal que nalguns casos chega ao limiar da expropriação.)
A tentativa de levar o Tribunal Constitucional a transformar questões políticas em dogmas constitucionais é uma faca de dois gumes. Por um lado, ao constitucionalizar leituras políticas de temas da actualidade, limita a liberdade de escolha democrática, para o melhor ou para o pior. Num país que já tem uma Constituição demasiado normativa e excessivamente programática, uma Constituição que não se limita a estabelecer as regras do jogo democrático, antes procura impor as escolhas políticas e sociais de uma geração às gerações seguintes, todo o esforço nesse sentido contribui para amarrar ainda mais o país a um destino que não escolheu hoje, mas há mais de trinta anos.
Por outro lado, ao querer levar questões políticas ao Tribunal Constitucional, obriga-se os juízes a agirem no terreno da política e, por isso, a terem consciência das consequências das suas decisões. No terreno da Constituição, julgam de acordo com os princípios constitucionais; no terreno mais comezinho de avaliar a equidade das políticas públicas, ao optarem por fazê-lo não podem deixar de ter em conta que Portugal é um país que, neste momento, se encontra com a sua soberania limitada pelas razões económicas que se conhecem. Nós não temos, infelizmente, liberdade para todas as escolhas que gostaríamos de ter. Não têm os cidadãos, não tem o Governo, não tem o Tribunal Constitucional. Nesta triste história não há espaço para Pilatos.

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