Um pacto suicida
As decisões do Tribunal Constitucional são públicas e questionáveis. Por isso, só faltava que estivessem imunes à crítica. O que eu li no mais recente acórdão do Tribunal Constitucional que rejeitou o corte do subsídio de férias a funcionários públicos e pensionistas não foi uma aplicação comum da igualdade e da proporcionalidade. Foi uma peculiar interpretação do que os juízes designaram por "igualdade proporcional", a que se juntou uma peculiar interpretação de outra regra: a igual repartição dos encargos públicos.
A maioria dos juízes do TC objectivamente acredita que o Estado empregador deve ser sujeito aos mesmos juízos de igualdade que o Estado fiscal. Daí que olhem para as reduções de salários, a suspensão do subsídio de férias e o aumento de impostos como uma concorrência de medidas que, por penalizarem especialmente os que recebem por verbas públicas, afectam a igualdade na repartição dos encargos públicos. O Estado pode, daqui para a frente, cortar na despesa pública. O que não pode é cortar na despesa com salários ou pensões, e aumentar simultaneamente os impostos para todos, já que este agravamento geral conjugado com uma redução especial de salários afectaria uma categoria de cidadãos: funcionários públicos e pensionistas. Mas então, não podendo o Estado tributar de forma diferente uns cidadãos face a outros e não podendo restringir mais os salários do público, como sair daqui? Dir-se-á que o Estado fica obrigado a três vias: ou a subir os impostos sem baixar salários do público (para não subverter a igual repartição dos encargos públicos), ou a cortar salários sem aumentar os impostos (para não pôr também em causa a igual repartição dos encargos públicos) ou subir impostos cortando noutras áreas da despesa (por exemplo, na despesa social ou despedindo funcionários, aproveitando a porta aberta pelo Tribunal sobre a equiparação entre funcionários do público e do privado). O que isto representa de ingerência dos nossos juízes na política orçamental é inédito. O TC não aceita que se cortem mais salários no Estado e em conjunto se aumentem os impostos. Num país que não tem acesso a meios de financiamento. Talvez aceite a renegociação dos juros da dívida. Nesse caso, como já foi recomendado aos senhores conselheiros: por que não se candidatam às eleições?Mas não se percebeu ainda como é que os nossos juízes aceitam que baixar despesa social ou despedir funcionários não afecta a justa repartição dos encargos públicos, considerando que esta é também a favor de cidadãos que recebem por verbas públicas e que a sua privação representaria uma diminuição da sua capacidade económica. Seriam estes cortes também inconstitucionais? Triste ironia esta de um TC poder viabilizar uma solução que penaliza mais gravemente aqueles que diz salvar.
Finalmente, a opção de manter o subsídio de férias, acompanhada de um aumento de impostos para todos, é aparentemente tida pelo Tribunal como adequada - apesar da evidente desigualdade que penalizaria ainda mais os trabalhadores privados. Mas aqui o Tribunal não vê problema. A igualdade que tanto o agita só actua em favor dos sectores públicos e não dos privados. Nunca ninguém se lembrou de alegar no passado a inconstitucionalidade dos aumentos salariais dos funcionários públicos; nem de outros regimes sem risco que ainda subsistem no público. Quem o fizesse não teria qualquer êxito. E, no entanto, por que razão é que os privados que suportam falências e despedimentos não podem exigir o mesmo tratamento legal que o Estado concede aos seus funcionários, a fim de defender uma mais justa repartição dos encargos públicos?
Mas o TC nunca daria esse passo. Deu agora um passo para fazer da Constituição um pacto suicida.
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