Está o PS condenado a ser Governo? E nós a ser governados pelo PS?

José Manuel Fernandes, Público, 26/04/2013

Portugal, para o bem e para o mal, é o Estado, e o Estado que temos confunde-se com o PS que temos. É tão socialista como ele
Os gaulistas foram, durante muito tempo, uma espécie de "donos" da V República francesa. A democracia cristã italiana comportou-se, durante décadas, como se a Itália lhe pertencesse. Esses partidos, que se confundiam com o regime, criavam a ideia da impossível alternância. Mesmo quando momentaneamente eram afastados do poder, havia a percepção de que isso era apenas um acidente de percurso.
Em Portugal é o PS que tem esse estatuto. Em parte por mérito próprio - pelo que fez em 1974/75 -, muito por demérito alheio, mas sobretudo porque o país parece ser o PS. Até hoje, até com António José Seguro, até neste tempo em que o PS é cada vez mais - como se viu em todo o processo que levou ao congresso deste fim-de-semana - um corpus aparelhístico, calculista e ressentido, Portugal não deixou de se sentir a si mesmo como o PS o imagina e moldou.
Houve um tempo em que se disse que o PSD era o "partido mais português de Portugal", mas mesmo que essa definição fosse em si mesma uma tristeza, era sobretudo fruto de uma ilusão. Correspondeu a esse período, curto, de optimismo pequeno-burguês e novo-rico que foi o do cavaquismo, quando se acreditou que o "empreendedorismo" chico-esperto nos tiraria do atraso secular, nos devolveria à Europa e traria amanhãs que cantam. Foi logro que ainda durou menos que o cavaquismo e morreu às mãos doces da "paixão pela educação".
O PS nunca tentou ser o partido do portuguezinho miúdo e desenrascado, sempre assumiu sem complexos a sua vocação de partido dos funcionários médios e medianos, da classe média "trabalhadora por contra de outrem", sendo esse "outrem", de preferência, o Estado. Boa parte do seu sucesso reside precisamente neste ponto. O PS é o partido do Estado e dos seus funcionários, é o partido das funções públicas e de todos os que se encostam ou dependem do Estado, e isto só por si é garantia de sucesso, ou não fosse o "partido Estado", tal como tem vindo a definir Medina Carreira, o maior partido português. É uma base eleitoral imensa.
A hegemonia socialista não deriva apenas da sua liderança na resistência à ofensiva comunista no período revolucionário - começou também na forma como redigiu a Constituição, aliando-se umas vezes à direita, outras vezes à esquerda, e tendo, nos últimos 36 anos, posto e disposto em todas as revisões constitucionais. O PS situou-se assim numa espécie de centro de gravidade do país político e institucional, razão por que nunca foi um partido reformista, apenas um partido situacionista, quando muito incremental.
Estar no centro de gravidade do país permite-lhe beneficiar de um estatuto único: o de, em última análise, ser ele, ou o que ele representa, que diz o que é ou não é aceitável na democracia portuguesa. Ao ponto de não o incomodar, pelo contrário, não conseguir formar alianças à esquerda, pois sabe que essa esquerda lhe dará força quando está na oposição, ao mesmo tempo que a direita lhe fará mimos quando estiver no poder.
O seu domínio é tão forte que é difícil imaginar um debate que não se realize nos seus termos e com a sua linguagem. Com um Governo PS a austeridade chama-se "rigor orçamental", os défices têm a virtude de serem "investimento", recentemente até se conseguiu que as mentiras passassem a ser designadas por inverdades. As dúvidas, mesmo as mais legítimas, sobre a honestidade dos seus dirigentes são "ataques de carácter", o jornalismo de investigação é um "jogo de lama" e os cortes no Estado social nunca passam de um esforço empenhado de "racionalização". Até o autoritarismo puro e duro passa a chamar-se "autoridade democrática".
Orwell explicou-nos, como nenhum outro, que dominar a linguagem é dominar a descrição da realidade, e que fazê-lo é controlar as mentes e os termos do debate político. As modernas "narrativas", que tanto gostam de invocar alguns dos mestres dos jogos de sombra do PS, não são mais do que a versão contemporânea e palatável do "newspeak" do romance 1984. Com uma novidade bem portuguesa: o PS nem precisa de se esforçar muito, pois o "newspeak" nacional, o "newspeak" dos debates na televisão, o "newspeak" do eterno "Prós e Prós" das nossas elites, é o "newspeak" socialista. E as excepções, mesmo quando episodicamente afloram à tona de água, apenas confirmam a regra. Os últimos dois anos são disso prova cabal - basta ver a forma como, este fim-de-semana, o país socialista entronizará um António José Seguro que, malgrado uma inabilidade homérica, conseguiu fazer dos seus temas os temas dessa coisa mole a que chamam "consenso".
Já o disse muitas vezes e volto a repeti-lo: por muito que se elogie o pragmatismo e a arte do equilíbrio, a política não faz sentido sem ideias. E a actual maioria começou a perder no momento em que não percebeu que não lhe chegava utilizar o estado de necessidade para reformar o país, tinha de apresentar outra ideia para o país. O mal começou a ser feito na campanha eleitoral, na qual o PSD, que se esperava estivesse ao ataque, esteve quase sempre à defesa por medo de se achar que era "liberal" - sendo que em Portugal nunca se é apenas liberal, é-se antes "neoliberal" ou "hiperliberal" - e que acabaria com o mitificado "Estado social". O mal continuou a ser feito quando, ingenuamente, Passos aceitou as pressões de Barroso e de Cavaco para não fazer um levantamento exaustivo do estado das contas públicas. Mas o principal mal foi feito por não se assumir que não bastava gerir bem e "cortar gorduras", antes que era necessário repensar as funções do Estado e a sua relação com os cidadãos. E o problema não foi apenas o da falta de coragem e de clarividência para assumir um discurso reformista - o problema foi que, para boa parte do Governo e da maioria, esse discurso nem fazia sentido. De uma forma ou outra, boa parte da actual maioria também adere à narrativa dominante, ao "newspeak" do nosso intocável regime.
Em condições normais, num país menos dominado pelo "pensamento único" estatista e socializante, a emergência económica teria, no mínimo, levado as elites a questionarem a bondade, até a justiça, dos actuais sistemas de protecção social, de saúde ou de educação. Foi isso que sucedeu há vinte anos nos países nórdicos e que levou a profundas alterações do seu modelo social e a uma redução do peso do Estado que permitiu à economia voltar a respirar e a crescer. Não foi isso que sucedeu em Portugal, onde o país e as elites se colocaram, sem hesitação, do lado do PS e da sua recusa de discutir o que quer que fosse mesmo perante a urgência dos quatro mil milhões.
É por tudo isso que o PS tem razões para festejar este fim-de-semana. Este país não vive sem o PS, este país não suporta a ideia de que tem de mudar, este país aceita placidamente que tudo pode continuar como está se se cortarem as PPP e se se diminuir o parque automóvel dos ministérios. No resto não se pode tocar. Ou, para ser mais exacto, só o PS pode tocar.
O grande triunfo do PS - e de Seguro - é que, ao fim de dois anos, o país continua a achar que não é necessário cortar nas funções do Estado e que basta "estimular a economia" para voltar a crescer e, assim, deixarmos de falar de "cortes". Como país pobre podíamos acreditar que era necessário mais esforço e mais sacrifício para sermos um pouco mais ricos, mas não. Preferimos acreditar que se gastarmos dinheiro emprestado nos tornamos, por milagre, mais ricos. É um sinal dos tempos. O tempo áureo das ideias socialistas foi quando se defendia que indo buscar aos ricos se enriqueciam os pobres; agora, quando os nossos "ricos" mal emergem da classe média, o grande projecto socialista é contrair e manter dívidas pois, como um dia disse Mário Soares, o dinheiro "aparece sempre". Já não nos apareceu por três vezes, mas ainda não aprendemos. Há razões para festejar em Santa Maria da Feira.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António