Ficção científica
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2013-04-29
Ter um texto aceite nesta revista, uma das mais prestigiadas do mundo, implica aprovação num exigente processo de revisão. Mas revisão não significa replicação dos resultados. Uma das regras mais básicas do procedimento científico, em qualquer disciplina, é que as investigações empíricas ou laboratoriais sejam passíveis de reprodução posterior, parte essencial da solidez demonstrativa. Havendo normalmente muitos autores na mesma área, o processo de teste acontece naturalmente após a publicação. Agora três economistas, Thomas Herndon, Michael Ash e Robert Pollin, da Universidade de Massachusetts Amherst, apresentaram um ensaio, "Does High Public Debt Consistently Stifle Economic Growth? A Critique of Reinhart and Rogoff", que sugere problemas nas estimativas do artigo original.
Até aqui tudo normal. Deste debate, muito comum, sairá novo avanço na ciência. Mas a agenda política, apesar de simular idoneidade intelectual, defende interesses, não a verdade, e viu nesta investigação complexa uma oportunidade de jogo. De repente deflagou uma espiral de simpificação e exagero. Primeiro o texto original ficou resumido a um número que, os críticos alegam, está mal calculado. Depois, essa taxa de crescimento médio dos países muito endividados passou a ser exaltada como o resultado decisivo para inspirar toda a austeridade mundial. Finalmente, embora o debate ainda mal tenha começado, a imprensa já decidiu quem tem razão.
Tudo isto é um flagrante disparate. Existem evidentemente dezenas de cálculos no texto original de Reinhart e Rogoff, o qual é apenas um entre inúmeros estudos de múltiplos autores sobre o tema. Por importante que seja, a relevância política de uma taxa é mínima. Se a famosa conta tivesse sido feita como agora é proposto, e o crescimento estimado fosse afinal 2,2%, em vez dos -0,1% originais, o impacto disso na austeridade portuguesa seria... nenhum. Não só o número é irrelevante para a conjuntura nacional, mas as razões do nosso aperto são outras.
Nada disto interessa a quem quer impor um resultado por razões de conveniência. A ignorância exultou com o alegado erro dos especialistas. Sem que tenham lido qualquer dos estudos, a simples suspeita bastou para fazer disparar a poderosíssima máquina da retórica sensacionalista, num campeonato de títulos bombásticos: "Rogoffgate: Um tiro no porta-aviões da narrativa da dívida" (Dinheiro Vivo, 17/Abril), "Vítor Gaspar e Carlos Costa citaram estudo com erro no Excel para defender corte na dívida" (Público, 18/Abril).
A verdadeira finalidade nunca foi informar, compreender, resolver problemas, mas polemizar, ridicularizar, divertir. Afinal economia e crise não interessam, preferindo-se confundir para fazer uma boa piada. É triste, mas neste tempo, pretensamente científico e rigoroso, publicações respeitáveis apregoam boçalidades dignas da Idade das Trevas. A única coisa que ainda surpreende é existirem pessoas inteligentes capazes de acreditar na ideia totalmente absurda de a orientação de fundo da política internacional se basear numa única fórmula.
DN 2013-04-29
No meio do sofrimento económico tivemos uma notícia inacreditável: "Um dos ensaios académicos que têm servido de suporte para boa parte das políticas de austeridade na Europa contém um erro na fórmula do programa informático Excel" (Rádio Renascença, 18/4). Depois de tantos custos, cortes e despedimentos, afinal está tudo errado? Como é possível? Parece mentira!
Parece mentira porque é mesmo mentira. Trata-se de mais uma onda de sobre-excitação mediática sem qualquer significado. Vejamos brevemente os factos que suportam todo o aparato. Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart, professores de Harvard, dedicaram a sua vasta investigação à questão das crises financeiras e dívida excessiva. O seu livro de 2009, This time is different, em vias de sair por cá em tradução, foi um clássico instantâneo. Mas ele é apenas um de muitos estudos destes autores, como o artigo "Growth in a Time of Debt", publicado em Maio de 2010 na American Economic Review.Ter um texto aceite nesta revista, uma das mais prestigiadas do mundo, implica aprovação num exigente processo de revisão. Mas revisão não significa replicação dos resultados. Uma das regras mais básicas do procedimento científico, em qualquer disciplina, é que as investigações empíricas ou laboratoriais sejam passíveis de reprodução posterior, parte essencial da solidez demonstrativa. Havendo normalmente muitos autores na mesma área, o processo de teste acontece naturalmente após a publicação. Agora três economistas, Thomas Herndon, Michael Ash e Robert Pollin, da Universidade de Massachusetts Amherst, apresentaram um ensaio, "Does High Public Debt Consistently Stifle Economic Growth? A Critique of Reinhart and Rogoff", que sugere problemas nas estimativas do artigo original.
Até aqui tudo normal. Deste debate, muito comum, sairá novo avanço na ciência. Mas a agenda política, apesar de simular idoneidade intelectual, defende interesses, não a verdade, e viu nesta investigação complexa uma oportunidade de jogo. De repente deflagou uma espiral de simpificação e exagero. Primeiro o texto original ficou resumido a um número que, os críticos alegam, está mal calculado. Depois, essa taxa de crescimento médio dos países muito endividados passou a ser exaltada como o resultado decisivo para inspirar toda a austeridade mundial. Finalmente, embora o debate ainda mal tenha começado, a imprensa já decidiu quem tem razão.
Tudo isto é um flagrante disparate. Existem evidentemente dezenas de cálculos no texto original de Reinhart e Rogoff, o qual é apenas um entre inúmeros estudos de múltiplos autores sobre o tema. Por importante que seja, a relevância política de uma taxa é mínima. Se a famosa conta tivesse sido feita como agora é proposto, e o crescimento estimado fosse afinal 2,2%, em vez dos -0,1% originais, o impacto disso na austeridade portuguesa seria... nenhum. Não só o número é irrelevante para a conjuntura nacional, mas as razões do nosso aperto são outras.
Nada disto interessa a quem quer impor um resultado por razões de conveniência. A ignorância exultou com o alegado erro dos especialistas. Sem que tenham lido qualquer dos estudos, a simples suspeita bastou para fazer disparar a poderosíssima máquina da retórica sensacionalista, num campeonato de títulos bombásticos: "Rogoffgate: Um tiro no porta-aviões da narrativa da dívida" (Dinheiro Vivo, 17/Abril), "Vítor Gaspar e Carlos Costa citaram estudo com erro no Excel para defender corte na dívida" (Público, 18/Abril).
A verdadeira finalidade nunca foi informar, compreender, resolver problemas, mas polemizar, ridicularizar, divertir. Afinal economia e crise não interessam, preferindo-se confundir para fazer uma boa piada. É triste, mas neste tempo, pretensamente científico e rigoroso, publicações respeitáveis apregoam boçalidades dignas da Idade das Trevas. A única coisa que ainda surpreende é existirem pessoas inteligentes capazes de acreditar na ideia totalmente absurda de a orientação de fundo da política internacional se basear numa única fórmula.
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