Eu digo fé. Tu dizes...Sinto que devo muito ao cristianismo
O Laboratório da fé convidou algumas pessoas, crentes ou não crentes, para escreverem um texto sobre a fé. O resultado é apresentado, mensalmente, nesta rubrica intitulada: «Eu digo fé. Tu dizes...».
O texto que se segue é da autoria do jornalista José Manuel Fernandes.
http://www.laboratoriodafe.net/ 22-04-2013
O texto que se segue é da autoria do jornalista José Manuel Fernandes.
http://www.laboratoriodafe.net/ 22-04-2013
Nasci, na década de 1950, numa família católica da classe média e, como acontecia nessa época com quase todas as crianças, fui baptizado e segui a catequese até à primeira comunhão, uma cerimónia festiva que vivi intensamente. Continuei depois muito ligado à Igreja da minha paróquia, a do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa, beneficiando do activismo de um pároco precocemente desaparecido – o padre Aparício – e da excitação da construção e inauguração de um novo templo, para mais uma igreja arquitectonicamente arrojada, filha do talento de Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas. Continuei assim ligado a grupos que funcionavam junto da paróquia, cheguei a ajudar à missa e fiz, quando chegou a altura, o Crisma. Até que a minha vida mudou.
Quando tinha 15 anos e andava no Liceu Pedro Nunes, em Outubro de 1972, a polícia política da ditadura assassinou um estudante, Ribeiro Santos. Esse evento foi o detonador para o meu envolvimento no movimento associativo dos estudantes e, depois, no activismo político. Fi-lo, como era comum na época, numa organização radical, de inspiração marxista-leninista. De facto, no Portugal de Salazar e Caetano não era difícil que a revolta juvenil desembocasse no radicalismo político. Foi assim que me tornei comunista, mas numa sua versão mais radical – o maoismo –, tal como foi assim que, durante alguns anos (poucos, felizmente) vivi para a revolução – fui, como então se dizia, um "soldado da revolução".
Foi uma adesão total e, por isso, um mergulho num universo dominado por uma ilusão falsamente redentora e totalmente falsa – a ilusão comunista. Mas que era absoluta e impunha uma visão do mundo que se tinha por indiscutível, "científica" e, por isso, materialista. Deus ou a Fé Cristã não tinham lugar nela – não só a religião era vista como o "ópio do povo", como o ateísmo nos surgia como uma espécie de dogma. Foi uma experiência que descrevi numa troca de cartas com D. Manuel Clemente, Bispo do Porto (Diálogo em Tempos de Escombros, Pedra da Lua, 2010): "Bebi o espírito do tempo e, quase sem transição, tornei-me materialista lendo as vulgatas por onde então se estudava o 'materialismo dialéctico' e o 'materialismo histórico'. Esses textos não permitiam que se ficasse no meio da estrada, não deixavam qualquer espaço para a existência de um Ser que não fosse matéria. Não só me tornei ateu, e ateu militante, como tinha dificuldade em entender que aquela explicação do mundo que me parecia evidentíssima e completa não o fosse já para todos."
Como é que isso sucedeu? Fazendo um percurso em que o meu interesse pela Ciência desempenhou um papel importante. Como marxista e materialista, eu achava que a ciência ou já explicava tudo, ou iria explicar, e que não havia espaço senão para a matéria e para as suas forças no nosso Universo. Hoje sei que há graus de incerteza que a Ciência nunca suprirá e que basta isso para não podermos demonstrar cientificamente que Deus não existe. Ou que existe. Foi assim que me tornei agnóstico, aquele que não sabe, o que não tem Fé mas também não se opõe aos que têm Fé. Fi-lo por dúvida genuína e não por conveniência, como hoje está na moda. Como escrevi nessa mesma conversa epistolar com D. Manuel, "por vezes, sobretudo em alguns momentos mais intensos, tenho pena de não ter Fé, mas sinto que ter ou ter Fé não é uma decisão racional", ou seja, que "não posso decidir 'acreditar'".
Muitos ateus militantes não aceitam esta posição de "não saber" – e a partir daqui retomo o essencial do que escrevi num livro recente, autobiográfico, Era Uma Vez a Revolução (Aletheia, 2012).
É essa a posição de Richard Dawkins, o autor de A Desilusão de Deus, que recentemente me disse numa entrevista que só lhe interessava saber que "não é possível provar que Deus existe", que tentar fazê-lo seria uma perda de tempo como a de procurar demonstrar a existência de fadas, pelo que não conseguia "encontrar uma situação em que sentisse que existir Deus era necessário". Dawkins, mesmo sendo capaz de admitir que as religiões podem ter alguma utilidade – "considero-me agnóstico quanto às religiões" –, entende que "a Fé é a grande desculpa para se escapar à necessidade de pensar e de avaliar a evidência factual".
A forma como algumas religiões foram instrumentalizadas ao longo da História para os piores fins poder-me-ia levar a aceitar esta argumentação. Afinal ela casa a mesma evidência científica que eu conheço com uma percepção da evolução da Humanidade que associa religião a obscurantismo. Mas há outro ponto de vista que merece ser considerado: aquele que olha para as diferentes religiões e as vê como formas de assegurar o conjunto de valores e regras de comportamento que permitem às sociedades manter-se coesas. Antes de existirem leis formuladas pelos Estados, havia já regras que as pessoas seguiam voluntariamente ao aderirem a uma religião, regras sem as quais é muito difícil imaginar comunidades humanas estruturadas. Como um dia disse Irving Kristol, "as pessoas precisam de religião. É um veículo para que exista uma tradição moral. Trata-se de um papel fundamental que nada pode substituir".
É de resto muito interessante ler as passagens sobre religião do pequeno ensaio autobiográfico que Kristol escreveu para Neo-Conservatism, The Autobiography of na Idea. Nela ele faz duas distinções importantes. Uma é sobre acreditar ou não na existência de Deus, uma formulação que diz não ter sentido porque o conceito de "existência" não é um conceito divino. Por isso, ele acha que uma pessoa não "acredita" em Deus, antes tem Fé em Deus. "A relação com Deus, escreve ele, não é racionalista", uma formulação não muito diferente da que utilizei nesses meus diálogos com D. Manuel Clemente. "É por isso que as crianças são ensinadas a rezar, em vez de serem ensinadas nas 'provas' da existência de Deus", conclui.
A outra é sobre a importância que os teólogos cristãos dão, na sua interpretação da Bíblia, ao facto de "a natureza humana colocar inerentes limitações ao destino humano". O "pecado original" é, no fundo, uma forma de nos alertar para os nossos limites, limites que decorrem da nossa natureza profunda. Kristol recorda que esta doutrina já chocava com a sua crença num socialismo utópico no curto período juvenil em que foi trostkista (movimento que deixou aos 22 anos). No meu caso, foi a descrença na visão optimista da natureza humana que tinha quando era mais novo que também contribuiu para a minha descrença nas utopias socialistas e progressistas. Essa descrença também me fez reaproximar da religião – mas não de voltar a "acreditar".
Mas há uma outra componente, tão ou mais importante, uma componente moral e cultural. Aqui há uns anos, em conversa com um amigo espanhol muito de esquerda e que nunca perdia uma ocasião para criticar o protestantismo, ele virou-se para mim e disse-me: "Deixa-te de conversas. Nós, os ibéricos, somos todos católicos. Podemos dizer que somos ateus, mas somos católicos. Foi assim que fomos educados". Essa frase, vinda de quem vinha, fez-me pensar. E não me custou a admitir que, pelo menos culturalmente, somos todos católicos. É essa a matriz da sociedade, são essas as referências dos valores que impregnam tanto o nosso quotidiano como o nosso sistema legal.
Esta admissão de um "catolicismo cultural" é, contudo, insuficiente e, a meu ver, pobre. Quando penso naquilo que sou, e que de alguma forma sempre fui, não me posso dissociar dos valores morais que eram e são os da família onde cresci e das comunidades que integrei. E esses valores, que sempre procurei que dessem um sentido moral à minha vida, são valores do Cristianismo. Ao contrário do que admito possa ter acontecido com outras pessoas da minha geração ou mais velhas, nunca vivi o catolicismo como uma doutrina castradora. Os deveres rigorosos que impunha e impõe nunca deixaram de ser os meus, pois nunca acreditei na ausência de referências e sempre valorizei o dever de se ser exigente, sobretudo quando se começa por se ser exigente consigo mesmo. A preocupação com o outro que encontrei no Cristianismo nunca deixou de estar presente na minha vida, uma preocupação que não é apenas com um "outro" abstracto e longínquo – o pobre, o proletário –, antes uma preocupação que começa com as dificuldades concretas dos que vivem a nosso lado. O sentido da compaixão, a preocupação com a lealdade, a noção de que somos seres limitados e imperfeitos e que isso nos exige humildade e resiliência, o princípio da tolerância sem abdicar daquilo em que se acredita e por que se batalha, todos esses valores que me foram transmitidos pela educação católica sempre me deram balizas morais de acordo com as quais procurei e procuro julgar os meus actos, mesmo quando às vezes tenho menos sucesso. É por isso que sinto que devo muito ao Cristianismo, mesmo não tendo Fé.
Quando tinha 15 anos e andava no Liceu Pedro Nunes, em Outubro de 1972, a polícia política da ditadura assassinou um estudante, Ribeiro Santos. Esse evento foi o detonador para o meu envolvimento no movimento associativo dos estudantes e, depois, no activismo político. Fi-lo, como era comum na época, numa organização radical, de inspiração marxista-leninista. De facto, no Portugal de Salazar e Caetano não era difícil que a revolta juvenil desembocasse no radicalismo político. Foi assim que me tornei comunista, mas numa sua versão mais radical – o maoismo –, tal como foi assim que, durante alguns anos (poucos, felizmente) vivi para a revolução – fui, como então se dizia, um "soldado da revolução".
Foi uma adesão total e, por isso, um mergulho num universo dominado por uma ilusão falsamente redentora e totalmente falsa – a ilusão comunista. Mas que era absoluta e impunha uma visão do mundo que se tinha por indiscutível, "científica" e, por isso, materialista. Deus ou a Fé Cristã não tinham lugar nela – não só a religião era vista como o "ópio do povo", como o ateísmo nos surgia como uma espécie de dogma. Foi uma experiência que descrevi numa troca de cartas com D. Manuel Clemente, Bispo do Porto (Diálogo em Tempos de Escombros, Pedra da Lua, 2010): "Bebi o espírito do tempo e, quase sem transição, tornei-me materialista lendo as vulgatas por onde então se estudava o 'materialismo dialéctico' e o 'materialismo histórico'. Esses textos não permitiam que se ficasse no meio da estrada, não deixavam qualquer espaço para a existência de um Ser que não fosse matéria. Não só me tornei ateu, e ateu militante, como tinha dificuldade em entender que aquela explicação do mundo que me parecia evidentíssima e completa não o fosse já para todos."
Como é que isso sucedeu? Fazendo um percurso em que o meu interesse pela Ciência desempenhou um papel importante. Como marxista e materialista, eu achava que a ciência ou já explicava tudo, ou iria explicar, e que não havia espaço senão para a matéria e para as suas forças no nosso Universo. Hoje sei que há graus de incerteza que a Ciência nunca suprirá e que basta isso para não podermos demonstrar cientificamente que Deus não existe. Ou que existe. Foi assim que me tornei agnóstico, aquele que não sabe, o que não tem Fé mas também não se opõe aos que têm Fé. Fi-lo por dúvida genuína e não por conveniência, como hoje está na moda. Como escrevi nessa mesma conversa epistolar com D. Manuel, "por vezes, sobretudo em alguns momentos mais intensos, tenho pena de não ter Fé, mas sinto que ter ou ter Fé não é uma decisão racional", ou seja, que "não posso decidir 'acreditar'".
Muitos ateus militantes não aceitam esta posição de "não saber" – e a partir daqui retomo o essencial do que escrevi num livro recente, autobiográfico, Era Uma Vez a Revolução (Aletheia, 2012).
É essa a posição de Richard Dawkins, o autor de A Desilusão de Deus, que recentemente me disse numa entrevista que só lhe interessava saber que "não é possível provar que Deus existe", que tentar fazê-lo seria uma perda de tempo como a de procurar demonstrar a existência de fadas, pelo que não conseguia "encontrar uma situação em que sentisse que existir Deus era necessário". Dawkins, mesmo sendo capaz de admitir que as religiões podem ter alguma utilidade – "considero-me agnóstico quanto às religiões" –, entende que "a Fé é a grande desculpa para se escapar à necessidade de pensar e de avaliar a evidência factual".
A forma como algumas religiões foram instrumentalizadas ao longo da História para os piores fins poder-me-ia levar a aceitar esta argumentação. Afinal ela casa a mesma evidência científica que eu conheço com uma percepção da evolução da Humanidade que associa religião a obscurantismo. Mas há outro ponto de vista que merece ser considerado: aquele que olha para as diferentes religiões e as vê como formas de assegurar o conjunto de valores e regras de comportamento que permitem às sociedades manter-se coesas. Antes de existirem leis formuladas pelos Estados, havia já regras que as pessoas seguiam voluntariamente ao aderirem a uma religião, regras sem as quais é muito difícil imaginar comunidades humanas estruturadas. Como um dia disse Irving Kristol, "as pessoas precisam de religião. É um veículo para que exista uma tradição moral. Trata-se de um papel fundamental que nada pode substituir".
É de resto muito interessante ler as passagens sobre religião do pequeno ensaio autobiográfico que Kristol escreveu para Neo-Conservatism, The Autobiography of na Idea. Nela ele faz duas distinções importantes. Uma é sobre acreditar ou não na existência de Deus, uma formulação que diz não ter sentido porque o conceito de "existência" não é um conceito divino. Por isso, ele acha que uma pessoa não "acredita" em Deus, antes tem Fé em Deus. "A relação com Deus, escreve ele, não é racionalista", uma formulação não muito diferente da que utilizei nesses meus diálogos com D. Manuel Clemente. "É por isso que as crianças são ensinadas a rezar, em vez de serem ensinadas nas 'provas' da existência de Deus", conclui.
A outra é sobre a importância que os teólogos cristãos dão, na sua interpretação da Bíblia, ao facto de "a natureza humana colocar inerentes limitações ao destino humano". O "pecado original" é, no fundo, uma forma de nos alertar para os nossos limites, limites que decorrem da nossa natureza profunda. Kristol recorda que esta doutrina já chocava com a sua crença num socialismo utópico no curto período juvenil em que foi trostkista (movimento que deixou aos 22 anos). No meu caso, foi a descrença na visão optimista da natureza humana que tinha quando era mais novo que também contribuiu para a minha descrença nas utopias socialistas e progressistas. Essa descrença também me fez reaproximar da religião – mas não de voltar a "acreditar".
Mas há uma outra componente, tão ou mais importante, uma componente moral e cultural. Aqui há uns anos, em conversa com um amigo espanhol muito de esquerda e que nunca perdia uma ocasião para criticar o protestantismo, ele virou-se para mim e disse-me: "Deixa-te de conversas. Nós, os ibéricos, somos todos católicos. Podemos dizer que somos ateus, mas somos católicos. Foi assim que fomos educados". Essa frase, vinda de quem vinha, fez-me pensar. E não me custou a admitir que, pelo menos culturalmente, somos todos católicos. É essa a matriz da sociedade, são essas as referências dos valores que impregnam tanto o nosso quotidiano como o nosso sistema legal.
Esta admissão de um "catolicismo cultural" é, contudo, insuficiente e, a meu ver, pobre. Quando penso naquilo que sou, e que de alguma forma sempre fui, não me posso dissociar dos valores morais que eram e são os da família onde cresci e das comunidades que integrei. E esses valores, que sempre procurei que dessem um sentido moral à minha vida, são valores do Cristianismo. Ao contrário do que admito possa ter acontecido com outras pessoas da minha geração ou mais velhas, nunca vivi o catolicismo como uma doutrina castradora. Os deveres rigorosos que impunha e impõe nunca deixaram de ser os meus, pois nunca acreditei na ausência de referências e sempre valorizei o dever de se ser exigente, sobretudo quando se começa por se ser exigente consigo mesmo. A preocupação com o outro que encontrei no Cristianismo nunca deixou de estar presente na minha vida, uma preocupação que não é apenas com um "outro" abstracto e longínquo – o pobre, o proletário –, antes uma preocupação que começa com as dificuldades concretas dos que vivem a nosso lado. O sentido da compaixão, a preocupação com a lealdade, a noção de que somos seres limitados e imperfeitos e que isso nos exige humildade e resiliência, o princípio da tolerância sem abdicar daquilo em que se acredita e por que se batalha, todos esses valores que me foram transmitidos pela educação católica sempre me deram balizas morais de acordo com as quais procurei e procuro julgar os meus actos, mesmo quando às vezes tenho menos sucesso. É por isso que sinto que devo muito ao Cristianismo, mesmo não tendo Fé.
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