Herança liberal

Pedro Braz Teixeira, i-online 17 Abr 2013
Ainda que não o desejasse, Thatcher ajudou a criar as bases da actual crise global
A ideologia sobre as políticas públicas tende a oscilar entre dois pólos: o Estado e o mercado. A partir dos anos 30 do século passado, o pêndulo estava claramente do lado do Estado, com uma clara preferência por políticas intervencionistas.
Nos anos 70 deu-se uma clara alteração deste estado de coisas, primeiro com os fracassos económicos do intervencionismo, com o surgimento da estagflação: inflação e desemprego elevados; depois com a valorização dos teóricos liberais, como Hayek e Friedman, prémios Nobel da Economia em 1974 e 1976, respectivamente; e, finalmente, com a ascensão ao poder de políticos liberais, como Thatcher e Reagan, em 1979 e 1981.
Thatcher lançou um programa de liberalização da economia, com privatizações em massa, que acabaram por contagiar a generalidade dos países, para além do contributo para a liberalização política, nomeadamente para a queda dos regimes comunistas.
Julgo que se deve elogiar a inovação empresarial versus uma demasiado frequente inércia burocrática do Estado. Por outro lado, se as empresas se desviam do bem comum, que nem é o seu propósito central, é também vulgar isso acontecer no Estado, onde o bem-estar geral deveria ser acautelado.
Mas a vitória política - relativa - liberal, dos mercados sobre o Estado, encerra em si uma dura ironia.
É que há várias estruturas de mercado possíveis, do extremo da concorrência perfeita, passando pelos oligopólios (mercados com poucas empresas, com poder de influenciar os preços), ao outro extremo, o monopólio, em que o poder de mercado é máximo.
Do ponto de vista teórico, os mercados de concorrência perfeita apresentam vantagens admiráveis, por produzirem os resultados mais eficientes e por serem os mais equitativos. Já os mercados em oligopólio e monopólio são muito menos interessantes, por produzirem ineficiências e graves problemas de equidade.
Ou seja, a defesa do "mercado" só faz verdadeiramente sentido quando falamos de mercados de concorrência perfeita ou perto disso, já que nos outros casos é necessária uma forte intervenção do Estado (que só em teoria é que funciona bem), para minorar as sérias deficiências que as outras estruturas de mercado encerram.
Há aqui dois problemas. Por um lado, a sofisticação das economias e dos produtos afasta-nos cada vez mais do paradigma da concorrência perfeita. Por outro, deixadas a si próprias, as empresas farão tudo para se desviar da concorrência perfeita, em que os lucros são mínimos.
Assim, deixados a si próprios, os mercados tenderão, naturalmente, a produzir os piores resultados, o mais afastados possível do caso em que os mercados produzem as consequências socialmente mais interessantes (em concorrência perfeita).
Gerou-se então um grave equívoco, que designei "dura ironia", em que, quanto mais se defende a liberdade dos mercados (a menor intervenção pública possível), mais nos afastamos das vantagens dos mercados.
O cúmulo desta "dura ironia" ocorreu com a liberalização financeira da primeira década do século xxi. Ao permitir a criação de um sistema financeiro e bancário "sombra", sujeito a uma regulamentação mínima, permitiram-se os maiores desmandos, que deram origem à crise financeira iniciada em 2007, que colocou o mundo na mais grave crise económica desde a Grande Depressão, iniciada em 1929.
O sucesso político do liberalismo não só trouxe esta grande crise, como trouxe mudanças profundas em termos sociais, com uma profunda alteração dos valores sociais. Uma das mais graves foi a transformação da ganância numa virtude, uma das novidades mais lamentáveis.
O mundo não pára e, havendo muitos aspectos interessantes a reter do liberalismo, há também muitas correcções a fazer.
Director-executivo do Nova Finance Center, Nova School of Business and Economics

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