Encontros imediatos do 3.º grau

Sol, 8 de Abril, 2013 | José António Saraiva

Há uns anos, eu deixava habitualmente o carro no parque subterrâneo de um prédio com acesso pela Av. da Liberdade e cujas traseiras davam para a Rua Duque de Palmela.

João Vale e Azevedo, na altura presidente do Benfica, tinha escritório nesse prédio, o que era uma festa: quase todos os dias, à saída dos elevadores, havia uma bateria de jornalistas à sua espera.
Às vezes, eu e ele cruzávamo-nos de manhã ou ao fim da tarde, e fazíamos conversa de circunstância. Um dia apanhou-me à saída e propôs-se acompanhar-me a pé até ao meu emprego. Na véspera tinha havido um debate televisivo entre os candidatos à presidência do Benfica, que ele vencera claramente, e queria falar sobre o assunto. Fomos então pela Rua Duque de Palmela fora, com ele a debitar as suas impressões da noite anterior. A certa altura, procurando ser simpático, eu disse-lhe:
-- Tenho de lhe dar os parabéns pelo debate! Você, mesmo quando não tem razão, consegue ser convincente.
Ele olhou para mim espantado, e acabou por dizer:
– Arq.º Saraiva, está enganado! Eu tinha razão em tudo o que disse!
Percebi que não valia a pena contra-argumentar. O homem estava absolutamente convencido da sua verdade e nada o demoveria. Foi esta a ideia que me veio à cabeça no fim da entrevista com Sócrates na quarta-feira da semana passada.
Sócrates e Vale e Azevedo são almas gémeas. Têm personalidades muito próximas. São ambos megalómanos, perseverantes, combativos e portadores de uma energia inesgotável, acham que não fizeram nada de errado mas levam instituições à falência, têm um enorme desplante, mentem com toda a convicção (porque parecem não saber distinguir entre a verdade e a mentira) e tudo aquilo em que se metem é nebuloso.
No princípio da entrevista, Sócrates garantiu que não seria candidato a Belém. Lembrei-me de que, dois ou três meses antes de assumir a liderança do PS, ele me disse que ia abandonar a política. Perante a minha insistência, respondeu-me que era uma decisão inabalável, pois Guterres tinha saído muito mal do poder e ele não queria passar pelo mesmo. Isto, repito, passava-se poucos meses antes de ganhar a presidência do PS. Como poderemos saber o que ele fará dentro de três anos? Mas houve quem aceitasse essa garantia como boa…
Depois deste intróito, Sócrates atacou os que criticaram o seu regresso à TV, dizendo que o queriam calar, que pretendiam impedi-lo de se defender, que tal era antidemocrático e mostrava «o carácter dessa gente». Ele seria incapaz de fazer o mesmo a alguém.
Neste ponto da entrevista, senti um sobressalto: mas, afinal, quem pressionou a TVI para afastar Manuela Moura Guedes? Quem manobrou para pôr José Manuel Fernandes fora do Público? E Mário Crespo fora da SIC? Quem enviou Rui Pedro Soares a Madrid para comprar a TVI, em nome da PT, com vista a mudar-lhe a orientação? Quem deu instruções a Armando Vara, então administrador do BCP, para fechar o SOL?
Sócrates desencadeou uma ofensiva sem precedentes contra vários órgãos de comunicação social, e agora tem o desplante de se queixar de que não queriam deixá-lo falar? Ainda por cima, ele sabe perfeitamente que, em cima da sua secretária em Paris, há pedidos de entrevista de toda a imprensa portuguesa. Queriam amordaçá-lo? Não brinquemos com coisas sérias.
A entrevista prosseguiu com Sócrates a rebater os «embustes» de que foi vítima e a corrigir a «narrativa» que se escreveu a seu respeito. Garantiu que o Memorando que assinou com a troika não previa cortes do 13.º e 14.º meses, aumento do IVA, reduções dos salários e pensões, etc. Um dos entrevistadores, Paulo Ferreira lembrou que o Memorando não estabelecia medidas concretas «mas apenas metas». Sócrates fingiu, porém, que não ouviu. Continuou na sua. E para condicionar os entrevistadores, usou várias vezes um truque a que Chávez também recorria: acusou-os de repetirem as «mentiras da direita» a seu respeito.
Sócrates levava outro alvo na mira, o Presidente da República. Disse que Cavaco não tinha «autoridade moral» para lhe dar lições, e citou o caso das escutas. Afirmou que foi uma «invenção da Casa Civil do Presidente para derrubar o Governo». Não sei se foi uma invenção nem sei qual era a intenção. O que sei é que o caso foi aproveitado à exaustão pelo Governo de Sócrates e pelo Partido Socialista para atacar Cavaco. Se houve aproveitamento político do caso das escutas, foi do PS para atacar Cavaco e não o inverso. Aliás, ao contrário do que Sócrates também afirmou, a 'personagem central' do caso, Fernando Lima, não foi promovido mas sim destituído da chefia do gabinete de imprensa, e afastado do espaço público.
Mas, no ataque a Cavaco, Sócrates não se ficou por aqui. Adiantou que o Presidente tinha uma atitude em relação ao seu Governo, e tem outra relativamente a este. Mas Sócrates estará bem informado do que se passa em Portugal? Onde estaria quando Cavaco pronunciou o célebre discurso de Ano Novo em que falou da «espiral recessiva»? Ou quando enviou o Orçamento para o TC com observações assassinas para o Governo de Passos Coelho sobre os cortes nas pensões?
Será a 'narrativa' que está errada – ou Sócrates que quer escrever uma História que não existe?
Porém – hélas! –, depois de negar todas as acusações que lhe têm sido feitas, esgrimindo números que 'provam' que ele nem governou nada mal, Sócrates reconheceu ter cometido um erro. Fez-se suspense. Ficámos todos à espera que ele fosse apontar uma medida mal pensada, algo que explicasse o facto de o país estar à beira da bancarrota quando ele saiu. Então, disse:
– Sim, cometi um erro. Se voltasse atrás, não o tinha feito. O erro foi formar um Governo minoritário. Tive de enfrentar permanentemente um Parlamento hostil.
Afinal, o erro de Sócrates não foi bem um erro – foi um acto de coragem. Do qual ele acabou sendo a vítima. Um herói incompreendido. Quase um mártir.
Este tom perpassou por toda a entrevista. Sócrates nunca foi um carrasco – foi sempre uma vítima. Uma vítima da oposição, que chumbou o PEC IV. Uma vítima do Presidente da República, que conspirou contra ele. Uma vítima dos mercados, que agiram com ganância e foram responsáveis pelo aumento da dívida. Uma vítima 'dessa gente' que o queria agora calar.
A meio da entrevista, tive uma sensação de déjà vu, de cansaço. Aquele era um filme já visto, num estilo conhecido.
No fim do programa, porém, todos os canais se lançaram com louca excitação para escalpelizar as palavras de Sócrates, mobilizando para o efeito baterias de comentadores que proporcionaram uma verdadeira maratona que durou todo o serão.
Mesmo assim, houve grandes momentos. Na SIC Notícias, Sousa Tavares começou a esboçar uma defesa de Sócrates, sendo energicamente rebatido por Gomes Ferreira, que explicou que inúmeros prejuízos, como os das empresas públicas, das empresas municipais ou da Madeira tinham sido atirados para baixo do tapete e não contabilizados. Por isso, as contas de Sócrates eram «uma mentira».
Sousa Tavares ainda proporcionaria um momento hilariante ao dizer que, na era socrática, ninguém se tinha oposto às grandes obras públicas. Ricardo Costa emendou:
– Miguel, a Manuela Ferreira Leite foi sempre contra!
Mas Miguel não se lembrava. Não se lembrava de Manuela Ferreira Leite ter sido contra o TGV, contra o Aeroporto, etc., e até ter feito uma campanha eleitoral inteira a falar contra os grandes projectos, que – segundo ela – «iam lançar encargos brutais sobre as gerações futuras». Enfim, os defensores de Sócrates revelam em alguns temas uma memória tão boa como a do seu patrono.
O momento mais extraordinário daquela noite guardei-o, porém, para o fim. A certa altura da entrevista, José Sócrates disse, mostrando que não tinha nada a esconder:
– Nunca tive acções, nem dinheiro em offshores. Sempre tive a mesma conta bancária.
– Na Caixa Geral de Depósitos – anotou o jornalista Paulo Ferreira.
– Na Caixa Geral de Depósitos – confirmou Sócrates, humilde.
Ora aí, veio-me uma coisa à cabeça: 'Mas eu vi uns cheques de Sócrates doutro banco. Estarei a fazer confusão?'. Fui confirmar. Não estava a fazer confusão: os cheques eram mesmo de outro banco, o Totta, tinham escarrapachado o nome completo do cliente – «José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa» – e eram às centenas! Para que precisaria Sócrates de tantos cheques? Não faço a menor ideia.
A verdade é que há demasiadas interrogações no percurso de José Sócrates. Foi a coincineração da Cova da Beira, os mamarrachos da Câmara da Guarda, o diploma da Universidade Independente, o Freeport, o Face Oculta, o Tagus Parque… A propósito: de nada disto se falou na entrevista. l

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