Nefelibata por nefelibata...

José Carlos de Miranda
Público, 04/04/2013

É bem conhecido o denodo com que Vasco Graça Moura se tem oposto ao Acordo Ortográfico. Não nos surpreende pois que, no seu entender, os trinta volumes da edição da Obra Completa do Padre António Vieira, posto que "de saudar entusiasticamente" e apesar das "páginas notabilíssimas de introdução que já pôde ler", saiam "manchados" pelo "grave problema" de terem adoptado a respectiva norma (cfr. Público, 3.4.13). Como se pode inferir desta grafia ("adoptado" e "respectiva"), e com a ressalva de diversas medidas pessoais de "gravidade", até aqui, não lhe faltaria um ou outro subscritor entre os responsáveis por "este portentoso empreendimento". É natural que o lamente, ele e, com ele, alguns de nós que gostariam de uma língua portuguesa sem reformas ortográficas a brincar irresponsavelmente às transcrições fonéticas, um português com as marcas genéticas da mãe, capaz de, pela escrita, unir gerações à distância de séculos e sentimentos nacionais à distância de todas as longitudes e latitudes. Mas, para tanto, falta há muito alma em Portugal; alma e instituições em que encarne. E a caixa de Pandora só se abre; não se fecha. Abriram-na os burros patrioteiros da Primeira República e nunca mais foi possível sonhar. Neste contexto, para a língua portuguesa e para Portugal, pior que este Acordo seria não haver Acordo nenhum.
Compreendo pois que Graça Moura lamente esta triste condição, de língua doente e reformanda, numa Obra Completa cujo autor "modelou a identidade colectiva" dos que a falam; tanto mais que, nessa tarefa de escultor da identidade através da língua, o temos por lídimo colega e sucessor de Vieira. Mas espantam-me e intrigam-me duas premissas necessárias que se anulam entre si, a saber, o apelo, em matéria linguística, ao Estado e a uma lei positiva; e o regozijo com que saúda o empreendimento.
A lei positiva contradiz frequentemente valores verdadeiros, em termos éticos, e bem sabemos como se tornou por isso precioso ao Estado Moderno o instituto de "objecção de consciência" ética. O ordenamento jurídico tem limites naturais, dados na natureza humana universal, hoje aliás felizmente consagrados num instrumento de Direito Internacional de todos conhecido. Certamente, a língua é um constructo cultural e não goza de limites naturais dados. Mas não deixa de ser anterior ao poder político e, portanto, irredutível à lei positiva. Legislar em matéria linguística só pode vincular os cidadãos dentro de limites que agora seria ocioso determinar. No mínimo, assiste-nos perante a lei positiva um direito de "objecção de consciência" estética. E é esse direito que me permite neste momento estar a escrever "objecção" apesar de o fazer em contravenção à lei positiva em vigor (o escritor não nos explica como chega ao entendimento de que não está em vigor, mas isso é-me indiferente).
E não entendo, enfim, porque se irrita ao apontar-nos o facto de "ignorarmos a polémica e os problemas", de "não termos pedido pareceres científicos e jurídicos"? É caso para lhe retorcer a invectiva: "Viverá ele num Mundo Nefelibata?" Ignorará que, a polémicas destas, só se pode marcar o início? E que, mormente em matéria tão pouco legislável, os pareceres jurídicos não aportam a sentenças? Aplacá-lo-ia que no primeiro volume, fosse tratado a fundo o Desacordo sobre o Acordo (a bem dizer, seria necessário o volume inteiro). Mas a que preço? Quando sairiam os restantes trinta e um? Note-se que não estamos a falar de uma Edição Crítica, em que o problema de uma "actualização gráfica" não tem necessariamente que se pôr. Aliás - convém advertir - nem A Chave dos Profetas nem as Cartas Latinas aqui arroladas são propriamente de Vieira, senão dos humildes autores das respectivas versões portuguesas. Uma Edição Crítica (que, para estes trechos da Obra continuamos a sonhar) implicaria um desígnio puramente cultural. Mas como publicar trinta volumes sem a poderosa intercessão de Mercados, Academias, Políticas e até (porque não dizê-lo) de Vaidades? É que, segundo o nosso escritor (nego suppositum, mas adiante) "há hoje três grafias divergentes a serem aplicadas no mundo da língua portuguesa". Qual das três deveríamos assumir? O facto é qualquer uma delas e, mesmo, todas elas juntas (opção que obrigaria a dividir por três o rendimento da engrenagem de fixação do texto) excluiria recursos e agregaria ao empreendimento um peso fatal. Graça Moura rejubilou "ex corde" com o projecto e está desiludido. Errou ao rejubilar, de facto, pois foi justamente este Acordo Ortográfico que possibilitou a espantosa engrenagem académica, política, financeira e científica necessária à sua realização. A Obra Completa do Padre António Vieira, até agora impossível, é o primeiro fruto do facto de haver um Acordo Ortográfico no triste panorama político-linguístico da lusofonia.
Bem quiséramos nós, nefelibatas, que só o Acordo nos causasse prurido. Maiores pruridos e piores perigos encerra a falta de latinidade e religião do académico médio de hoje, em tratando-se de ajudar o "tal leitor comum" (que Graça Moura, só por Graça diz ser) a entrar no "mundo de Vieira (...) que vem dele até nós e passará além de nós". Até esses soubemos superar... "esfingicamente" (permita-se-nos tirar das fraquezas força). Como não haveríamos de superar o prurido do Acordo, detestado embora, ante o mérito intrínseco do desígnio? Qual seria a maior "irresponsabilidade lesa-cultura"? Sacrificar Vieira ao nosso Desacordo ou sacrificar o nosso Desacordo a Vieira? Tenho por mim que, pela nossa escolha, Vieira será mais lido e conhecido. A Obra Completa de Vieira ficará. Mas tanto o acordo como o desacordo passarão.
Coordenador dos Textos Latinos

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