O novo mar tenebroso

DN 2012-01-23
João César das Neves
O passado tem sempre boas lições. Por isso, nestes tempos de crise financeira global há muito a aprender com os erros dos marinheiros da época dos Descobrimentos.
A opinião actual sobre mercados financeiros cai facilmente no mito do "mar tenebroso". Como nos primórdios da aventura marítima, as notícias e comentários económicos estão cheios de monstros míticos, ameaças assombrosas, colossos maléficos. Das bolsas às agências de rating, dos bancos às multinacionais, não faltam candidatos a serpentes marinhas do mundo creditício. Serão essas análises erradas? Como os oceanos, as transacções financeiras incluem muitos dramas e imprevistos. Surgem tormentas e calmarias, ventos e naufrágios, piratas, escorbuto e indígenas hostis. Mas esses graves problemas são sempre acidentes, erros e crimes estritamente humanos, não aberrações acéfalas e perversas, como o Adamastor ou o Mostrengo que a lenda constrói.
Passado o susto, quando chegavam a terras longínquas, um segundo erro dos nossos navegantes era interpretar à portuguesa essa realidade exótica. Muita da incompreensão intercultural vinha de quem queria ver uma aldeia minhota nos aluviões indianos. Também hoje grande parte dos erros crassos nasce da simples confusão entre situações financeiras incomparáveis.
Um exemplo disto está nas conversas sobre o valor das acções na bolsa. Há anos que a minúscula cotação de alguns bancos e grandes empresas de referência é por cá tema de chacota ou preocupação, sem que se coloque a pergunta óbvia: se estão tão baratos, porque não são comprados? De facto, por muitos problemas que tenham, os seus activos devem valer muito mais que o apregoado. Mas quem comprasse todo o capital acessível nunca mandaria na empresa, que tem os estatutos blindados. Isto mostra como na Europa continental as bolsas são muito diferentes das anglo-saxónicas.
Grande parte do desenvolvimento mundial das últimas décadas advém das extraordinárias inovações financeiras, que se espalharam pelo mundo na globalização dos últimos 25 anos. O acesso ao capital é sempre decisivo para as empresas e a tradição bolsista americana não só o facilita muito, mas permite uma afectação eficiente dos activos, punindo quem os desperdiça e desviando o dinheiro para actividades produtivas. As finanças são um instrumento excelente mas, sempre baseadas na confiança, são também muito frágeis. Os ganhos conseguidos foram espantosos, sobretudo nos mais pobres, China, Índia e microcrédito. Mas a crise mostra que o crédito é como os automóveis: grandes vantagens com muitos acidentes.
A Europa acordou tarde para as novidades. Só com o projecto do euro a União veio aproveitar progressos que já eram antigos noutros lados. Mas fê-lo à europeia, sem deixar que os mercados ameaçassem a influência das élites económicas. O resultado é evidente: o euro nunca atingiu o dinamismo da zona dólar e ainda suporta uma instabilidade maior.
Um terceiro erro dos antigos exploradores era o oposto do anterior, pois a estranheza das diferenças culturais ocultava muitas semelhanças de comportamento. Um paralelo actual pode ver-se no drama do endividamento das famílias.
As dificuldades financeiras de bancos, empresas e governos têm sido tratadas através de fundos e outros apoios que aliviam a urgência e permitem um ajustamento razoável. Mas no que toca aos créditos pessoais ninguém apresenta respostas. Nesta questão, que gera enormes dramas familiares e afecta crescentemente o nosso panorama bancário, as coisas são resolvidas a quente e à bruta.
Soluções adequadas, paralelas às usadas nos outros sectores, estão bem analisadas tecnicamente por especialistas (ver, por exemplo, www.bridges-advisors.com/ pt-pt/blogs.asp). Falta apenas vontade dos bancos e autoridades para encontrar mecanismos que permitam gerir e aliviar, de forma equilibrada, a carga de dívidas que afoga tantas famílias.
No meio da confusão da crise mundial renascem velhos erros. Os tempos mudam, mas a natureza humana permanece. Por isso, o passado tem sempre boas lições.

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