O regime da suspeição

Público 2012-01-03 Pedro Lomba

Na sua mensagem de Natal ao país, Passos Coelho falou da "degradação dos laços de confiança" no regime e na sociedade portuguesa. Essa degradação da confiança, além de um desastre económico, tem sido para nós um desastre político. Portugal tem, de facto, o nível mais baixo de confiança entre todos os países da OCDE. Um nível que não é bem o de uma democracia saudável e coesa, mas de uma incubadora de raivas e rancores. Não vale a pena discorrer agora academicamente sobre a importância da confiança para sustentar um regime, quanto mais uma comunidade inteira. Mas interessa tentar perceber de que maneira e por que motivos essa confiança se esvaiu.

Primeiro e por razões em parte ligadas à longevidade da ditadura, a fundação do regime não foi outra coisa senão um acto declarado de desconfiança. Aqueles que em 1974 pregavam a favor da sempiterna luta de classes tinham em vista uma sociedade na qual qualquer poder, qualquer domínio deveria estar permeado por fortes sentimentos de desconfiança e rejeição. O PREC, até ser abortado, mais a conhecida convicção de que a revolução não poderia largar a rua, foi expressão do mesmo torvelinho de desconfiança. Em 1976, a Constituição encheu-se de "conquistas" irreversíveis porque as nossas esquerdas suspeitavam que governos e maiorias conjunturais pudessem desfazer a sua obra. A pulverização partidária exprimia outra das velhas desconfianças contra a maioria. Não houve ainda autonomia corporativa que não saísse também protegida, tudo em nome da desconfiança. E até o nosso semipresidencialismo, que hoje me parece uma ideia caduca e uma das causas do ruído e da intriga que povoam o país - basta ver como as declarações presidenciais são inutilmente analisadas nos jornais como "recados" e "avisos" - representa um sistema de distribuição do poder que pressupõe a desconfiança e sempre a desconfiança entre facções.

Uma classe média lábil em preservar direitos e a incapacidade tão portuguesa para formar instituições acima do nosso velho pessoalismo produziram, infelizmente, o resto. No rectângulo não existem hoje meia dúzia de instituições que mereçam aprovação. Basta que a desconfiança afecta quase tudo na relação entre o Estado e os cidadãos: quem no seu perfeito juízo pode confiar nos tribunais, em leis passíveis de mil e uma interpretações ou numa Administração politizada? Quem, ao ser preterido num concurso em que o Estado, empresas ou fundações do Estado esteja de algum modo envolvido, não ganha de imediato a sensação de que nem tudo naquela escolha foi transparente? Quem não pensa em conservar por todos os meios o seu favoritismo e posição simplesmente porque desconfia?

Naturalmente que este caldo de reserva e suspeição não poderia dar bom resultado. Como se está a ver, não se pode fazer um regime e genericamente um país na base da desconfiança. De uma desconfiança generalizada, infecciosa, omnipresente. Não funciona. E neste recanto toda a gente desconfia por sistema de toda a gente.

Ao contrário do que se pensa, este não é um problema moral e cultural. É um problema político e de regime.

É sempre esclarecedor ouvir o que dizem muitos portugueses que largaram o país nos últimos anos. Uns afirmam que a província se tornou inóspita; que de pouco vale permanecer num país que vai para obras pelo menos por 15 anos; que ganham pouco e trabalham mal. Mas o relato mais lúgubre que tenho ouvido vem dos que afirmam cruamente que perderam toda e qualquer confiança em Portugal, nos seus dirigentes, em partidos capturáveis, na transparência das decisões e na salubridade do Estado. Para muitos a emigração não se limita a ser uma escolha económica. É também, com algum dramatismo, um exílio forçado. Jurista

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