Esquerda e direita (I, II e III)
Esquerda e direita (I)
Lendo e ouvindo na televisão o dr. Mário Soares, mesmo a criatura mais desprevenida pode ver na história daquela vida exemplar (e de certa maneira fascinante) a história do socialismo desde o confuso fim da II Guerra até aos melancólicos dias por que passa hoje, na impotência e na esterilidade. Como dizia o outro, o tempo tem marés; e à primeira vista Soares foi sempre levado pela maré certa. Entre 1950-55 e 1970, bem antes da crise do petróleo, a Europa (ainda sem aspas) parecia finalmente ter conseguido resolver os problemas de uma era: havia crescimento, pleno emprego e um Estado social, que não parava de se expandir e de se aperfeiçoar. McMillan (de resto, um conservador) resumiu o milagre numa frase: " You have never had it so good ." Pouco antes da catástrofe.
Quando chegou o "25 de Abril", ainda se tentava por aqui e por ali resistir à evidência. A América, enterrada no Vietname, deixara de ser o banqueiro universal. Na "Europa" (agora já com aspas) o crescimento diminuía e o desemprego aumentava. Pior do que isso, o Estado social, orgulho do socialismo (e da democracia-cristã), esse "modelo" que a velha esquerda exibia triunfante à inigualitária América, começava a falhar: por falta de financiamento e de eficácia, por excesso de burocracia, pelo peso de uma carga fiscal cada vez maior. E, sobretudo, porque não se conseguira limitar e ano a ano absorvia, como é óbvio, em nome de altíssimos sentimentos, funções de uma indefinição utópica ou de irresponsabilidade radical, que dinheiro nenhum seria capaz de sustentar.
Para usar o calão da época, o Portugal de Salazar e de Caetano era um país do Terceiro Mundo, quando o socialismo e a "social-democracia" chegaram ao governo e, para se legitimar, decidiram construir um Estado social como na "Europa", no preciso momento em que pela "Europa" inteira o Estado social se ia pouco a pouco e se tornava um obstáculo à transformação e desenvolvimento da economia. Os "fundos" de Bruxelas disfarçaram transitoriamente esta cega corrida ao suicídio. Mas não duraram o suficiente. E, a seguir, veio o desespero e, com ele, o recurso sistemático ao empréstimo, como se a vida acabasse amanhã. Não vale a pena comentar onde esse caminho nos levou. O que vale a pena perceber é que a política do PS (e também, à sua maneira, do PSD) assenta nesse facto básico. Como se verá.
Esquerda e direita (II)
OPSD percebeu primeiro (se "perceber" é a palavra) o desastre que se aproximava. Por várias razões. Primeiro, porque sempre esteve mais ligado aos "negócios" do que o PS. Segundo, porque parte do seu pessoal económico e financeiro vinha de empresas ou da banca. E, terceiro, porque uma parte da geração que chegou ao governo durante Cavaco e a seguir ao "cavaquismo" se formara na América e, bem ou mal, absorvera a ortodoxia americana. Ainda por cima, o PSD - excepto pelo curto intervalo de Barroso e de Santana Lopes - vegetou quase quinze anos na oposição, inteiramente imerso numa guerra civil interna que paralisou o partido e por um pouco não o destruiu. Apesar disso, no meio dessa longa trapalhada, houve tempo para descobrir que a situação de Portugal se tornava pura e simplesmente insustentável.
Só que o PSD (ao contrário do CDS), estava ligado às suas clientelas na administração central e, sobretudo, na administração local, e não tinha grande espaço de manobra. Ou, pelo menos, não tinha o espaço de manobra que a crise e o memorando da troika mais tarde lhe abriram. O que, de resto, não lhe resolveu os piores problemas. Parcialmente responsável pela paternidade do Estado Social e da burocracia a que na altura Cavaco chamou "o monstro", o PSD não podia inverter de repente a sua posição tradicional e anunciar que se convertera por iluminação celeste a uma versão indígena do neoliberalismo. Neste aperto, que dura até hoje, foi dando uma no cravo e outra na ferradura, à espera que da mistura acabasse tarde ou cedo por sair qualquer coisa de bom.
Infelizmente, não contou com a sociedade portuguesa. Uma sociedade rural que passou para uma soi-disant sociedade de serviços, sem nunca verdadeiramente se industrializar. Uma sociedade dependente do Estado, desde "a sopa do convento", agora não por acaso ressuscitada. Uma sociedade parada e conformista, que odiava (e odeia) o individualismo e a mudança ("indivíduo" continua a ser um termo pejorativo em Portugal). E uma sociedade que sempre se queixou em vão da falta de uma iniciativa privada, que não aparecia ou morria depressa. O Governo de Passos Coelho não viu, e persiste em não ver, o país real e julga que o transformará, restabelecendo a liberdade, a concorrência e a inovação na economia. Sucede que Portugal não é a América, nem a Europa do Norte. Não se cria uma cultura com uma retórica emprestada e meia dúzia de leis. Depois da dívida e do orçamento, ficará o país do costume: obediente e resignado, com vaga esperança de um milagre improvável.
Público 2012-01-27
Vasco Pulido Valente
Quando chegou o "25 de Abril", ainda se tentava por aqui e por ali resistir à evidência. A América, enterrada no Vietname, deixara de ser o banqueiro universal. Na "Europa" (agora já com aspas) o crescimento diminuía e o desemprego aumentava. Pior do que isso, o Estado social, orgulho do socialismo (e da democracia-cristã), esse "modelo" que a velha esquerda exibia triunfante à inigualitária América, começava a falhar: por falta de financiamento e de eficácia, por excesso de burocracia, pelo peso de uma carga fiscal cada vez maior. E, sobretudo, porque não se conseguira limitar e ano a ano absorvia, como é óbvio, em nome de altíssimos sentimentos, funções de uma indefinição utópica ou de irresponsabilidade radical, que dinheiro nenhum seria capaz de sustentar.
Para usar o calão da época, o Portugal de Salazar e de Caetano era um país do Terceiro Mundo, quando o socialismo e a "social-democracia" chegaram ao governo e, para se legitimar, decidiram construir um Estado social como na "Europa", no preciso momento em que pela "Europa" inteira o Estado social se ia pouco a pouco e se tornava um obstáculo à transformação e desenvolvimento da economia. Os "fundos" de Bruxelas disfarçaram transitoriamente esta cega corrida ao suicídio. Mas não duraram o suficiente. E, a seguir, veio o desespero e, com ele, o recurso sistemático ao empréstimo, como se a vida acabasse amanhã. Não vale a pena comentar onde esse caminho nos levou. O que vale a pena perceber é que a política do PS (e também, à sua maneira, do PSD) assenta nesse facto básico. Como se verá.
Esquerda e direita (II)
Público 2012-01-28
Vasco Pulido Valente
O Estado Social foi inchando e com ele, inevitavelmente, a burocracia que o sustentava e que, fornecendo emprego à classe média, em certa medida o supria. Mais grave do que isso, o Estado Social invadiu áreas que nunca antes tutelara e o próprio progresso tecnológico (por exemplo, na medicina) o obrigou a entrar em outras, que pouco antes não existiam. Os partidos, tanto na administração central como na administração local, tiveram de aceitar esta nova realidade. Para ganhar uma eleição, era preciso apresentar "obra" e o número de "obras" que se inauguravam em campanha aumentou prodigiosamente: a educação e a saúde, o betão, os transportes, tudo o que alguém ou algum grupo reclamava com alguma persistência e força. A ficção de que Portugal se tornara de repente um país próspero alimentou a fantasia de uma espécie de Providência pública cada vez mais benévola e extensível.
O PSD de Cavaco ainda conseguiu preservar um certo equilíbrio. Daí em diante, o PS, excepto por um ou outro intervalo de lucidez, abriu o saco e não quis saber quem lá metia a mão, à sombra largamente mítica da "solidariedade" e da "justiça". Não faltaram avisos. Barroso até disse na Assembleia que Guterres nos deixara "de tanga". E os prognósticos na "Europa" e na América pioravam de ano para ano. O rei ia nu. Mas que podia fazer o PS, excepto ignorar a realidade e persistir na importância e na primazia do Estado Social? A sua identidade era essa; e a sua natureza. Não havia maneira de ignorar o que esperavam dele.
Quando a catástrofe finalmente chegou, só lhe ficava um papel: resistir à mudança. Lutar contra cada "corte" e defender cada benefício - com razão ou sem ela. Como antes já lutara Álvaro Cunhal, pelas "conquistas" constitucionais do PREC, que não valiam nada excepto para ele. É este o papel que hoje desgraçadamente cabe ao pobre Seguro, com a sua suavidade e a sua modéstia, enquanto a facção de Sócrates lhe tenta atrapalhar a vida e continua a berrar por um chefe morto; e os peritos da seita seriamente aconselham a "federalização" da dívida, como se não soubessem que a "Europa rica" a pés juntos recusa essa habilidade patética. Tarde ou cedo, o mundo acabará por engolir o PS, como engoliu o PC. Afinal que tem ele para oferecer ao país, sem dinheiro e sem crédito político (ou bancário), e sem sequer a simpatia e o apoio dos velhos companheiros de Soares? A "indignação" que o despreza? Ou a "rua" que não o segue?
O PSD de Cavaco ainda conseguiu preservar um certo equilíbrio. Daí em diante, o PS, excepto por um ou outro intervalo de lucidez, abriu o saco e não quis saber quem lá metia a mão, à sombra largamente mítica da "solidariedade" e da "justiça". Não faltaram avisos. Barroso até disse na Assembleia que Guterres nos deixara "de tanga". E os prognósticos na "Europa" e na América pioravam de ano para ano. O rei ia nu. Mas que podia fazer o PS, excepto ignorar a realidade e persistir na importância e na primazia do Estado Social? A sua identidade era essa; e a sua natureza. Não havia maneira de ignorar o que esperavam dele.
Quando a catástrofe finalmente chegou, só lhe ficava um papel: resistir à mudança. Lutar contra cada "corte" e defender cada benefício - com razão ou sem ela. Como antes já lutara Álvaro Cunhal, pelas "conquistas" constitucionais do PREC, que não valiam nada excepto para ele. É este o papel que hoje desgraçadamente cabe ao pobre Seguro, com a sua suavidade e a sua modéstia, enquanto a facção de Sócrates lhe tenta atrapalhar a vida e continua a berrar por um chefe morto; e os peritos da seita seriamente aconselham a "federalização" da dívida, como se não soubessem que a "Europa rica" a pés juntos recusa essa habilidade patética. Tarde ou cedo, o mundo acabará por engolir o PS, como engoliu o PC. Afinal que tem ele para oferecer ao país, sem dinheiro e sem crédito político (ou bancário), e sem sequer a simpatia e o apoio dos velhos companheiros de Soares? A "indignação" que o despreza? Ou a "rua" que não o segue?
Esquerda e direita (III)
Público 2012-01-29 Vasco Pulido Valente
Só que o PSD (ao contrário do CDS), estava ligado às suas clientelas na administração central e, sobretudo, na administração local, e não tinha grande espaço de manobra. Ou, pelo menos, não tinha o espaço de manobra que a crise e o memorando da troika mais tarde lhe abriram. O que, de resto, não lhe resolveu os piores problemas. Parcialmente responsável pela paternidade do Estado Social e da burocracia a que na altura Cavaco chamou "o monstro", o PSD não podia inverter de repente a sua posição tradicional e anunciar que se convertera por iluminação celeste a uma versão indígena do neoliberalismo. Neste aperto, que dura até hoje, foi dando uma no cravo e outra na ferradura, à espera que da mistura acabasse tarde ou cedo por sair qualquer coisa de bom.
Infelizmente, não contou com a sociedade portuguesa. Uma sociedade rural que passou para uma soi-disant sociedade de serviços, sem nunca verdadeiramente se industrializar. Uma sociedade dependente do Estado, desde "a sopa do convento", agora não por acaso ressuscitada. Uma sociedade parada e conformista, que odiava (e odeia) o individualismo e a mudança ("indivíduo" continua a ser um termo pejorativo em Portugal). E uma sociedade que sempre se queixou em vão da falta de uma iniciativa privada, que não aparecia ou morria depressa. O Governo de Passos Coelho não viu, e persiste em não ver, o país real e julga que o transformará, restabelecendo a liberdade, a concorrência e a inovação na economia. Sucede que Portugal não é a América, nem a Europa do Norte. Não se cria uma cultura com uma retórica emprestada e meia dúzia de leis. Depois da dívida e do orçamento, ficará o país do costume: obediente e resignado, com vaga esperança de um milagre improvável.
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