O Deus de "Odisseia no Espaço"

Henrique Raposo (www.expresso.pt)
8:00 Quarta feira, 18 de janeiro de 2012
Há dias, João Lopes escreveu o seguinte no DN: "provavelmente, na história do cinema moderno, não há filme como 2001: Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick, para ilustrar esse paradoxo muito humano que se joga entre o que somos e a imensidão daquilo que desconhecemos". É um pouco exagerado. Existem outros filmes que abordam o tal abismo "entre o que somos e a imensidão daquilo que desconhecemos". Porém, João Lopes acerta num ponto essencial: 2001 deixa-nos inquietos, porque aponta para algo que não conseguimos compreender através de uma razão meramente maquinal. O problema da argumentação só vem depois: "a identidade humana, pelo menos tal como a vivemos e pensamos na agitação tecnológica das últimas décadas, já não existe enraizada numa noção estável ou segura de natureza. Em boa verdade, o 'natural' é uma categoria em permanente conversão". Com o devido respeito, este raciocínio está errado.
2001 não apela a uma humanidade em mudança através da tecnologia. 2001 não faz parte de uma cultura, vá, cyborg. 2001 não aponta para um futuro pós-humano, no qual o "natural" deixa de ser "natural", no qual o humano é reconstruído ao sabor da tecnologia. A meu ver, o 2001 faz precisamente o apelo contrário: existem coisas que nunca mudarão na natureza humana, até porque existe uma transcendência que é mais alta do que o homem. Provas do meu argumento? Se bem me lembro, os astronautas não se aproximam da máquina, não se aproximam de uma moral pós-humana. É o Hal 9000, o computador, que começa a ter um comportamento humano. Bem humano, aliás. Depois, através do insondável monólito, 2001 apela a um mistério, a uma transcendência que é imutável, que é eterna. Há ali o eterno retorno, e não a mudança tecnológica da humanidade. Não é a última imagem um bebé no útero?  
Moral desta história interestelar? 2001 é a tangente que Kubrick fez à ideia de Deus. Não por acaso, o filme foi mal recebido por muitos críticos e intelectuais em 1968. Faz sentido, sim senhor. O relativismo pós-moderno dos nossos dias estava em plena ascensão no final dos anos 60. Muitos consideraram o filme demasiado chato e abstracto (pois, a transcendência tende a ser abstracta; caso contrário, não seria transcendente) e moralmente pretensioso (pois, a ideia de que existe uma moral superior ao eu entrou na categoria de tabu). Tudo óbvio e natural: 2001 deu um certo medinho a quem tem pavor do silêncio do deserto. 

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