Onde está você agora?
Público, 2012-01-19
Fátima Pinheiro
Os avanços da Ciência demonstram magnificamente a sua categoria e a daqueles que a tem construído desde que a razão é razão. Concomitantemente, a História possui capítulos de menos elevação, nomeadamente, de quem não a soube utilizar de forma humana, mas apenas como instrumentalização para um fim que nada tem a ver com os do Rei que soube descobrir (utilizando o seu sábio coração), das mães em disputa, qual a que falava verdade. Quer queiramos, quer não, o assunto das "barrigas de aluguer" (BA) não se desliga, pois, da concepção que cada um tem da vida. E até aquele que defende que a concepção da vida sou "eu" que a decido, ou que até não há concepção nenhuma do que seja a vida humana, e que somos todos um nada (ou que para lá caminhamos, gota a gota), é mesmo assim que entende, isto é, é assim que se percebe, a si e aos outros. Erroneamente, claro, porque para se ser "nada" é preciso ser-se alguma coisa. Não preciso de me chamar Santo Agostinho para confessar que o mal é um parasita do bem, tendo apenas realidade moral, e não ontológica. Do nada, nada surge.
Eu posso querer acabar com a minha vida. Eu posso querer matar a vida de um outro. Eu posso querer ter um filho, alugando ou não uma barriga (pode não me apetecer carregar a encomenda, e pedir a outra que o faça). Mas no caso extremo - que é o que está em causa agora - de querer muito tê-lo e a natureza não mo deixar, mesmo nesse caso, tudo se reduz a algo muito simples: é pedir a alguém que seja, durante nove meses, apenas uma barriga. É fazer um contrato - claro que por mútuo consentimento - em que se pede a alguém (pagando, ou não pagando; até porque a generosidade não tem preço) que prescinda dos sentimentos e do entendimento que durante nove meses se geram entre uma mãe e um filho.
Claro que a Ciência pode, a Ciência até pode pegar no bebé antes dos nove meses, e fazê-lo viver. Não é isso. O que está em causa aqui é pedir a alguém que deixe de ser alguém. O consentimento da alugada em nada anula o argumento, embora a sua liberdade seja inviolável. E mais ainda, o que se passa durante o período de gestação na BA - e porque a vida é uma constante surpresa - tem levado, em casos conhecidos, a que o consentimento inicial "morra". Isto é, a mãe alugada vê crescer o bebé no seu seio e transformam-se os dois. Não há mãe que não se surpreenda na primeira ecografia, ou com o primeiro pontapé que leva daquele que nela começa a ter autonomia. Não há bebé (mais uma vez a Ciência a maravilhar) que não reconheça (ainda na BA) a voz e o toque da "dona" da barriga (e também a voz do pai). Sendo um só, são dois. E sendo dois, são um só.
As BA não são um bom negócio para as pessoas envolvidas. Parece, mas não. Queres ser durante nove meses apenas uma barriga? Poder, podes, mas estou a pedir-te o que ninguém merece. Estamos fartos de saber que o dinheiro não paga tudo e que brincar com os sentimentos, as fragilidades humanas, não abona em favor do humano. Ousa saber, sim! Agora, ousa fazer, nem sempre. Mesmo que eu deseje muito uma coisa, é preciso atender a todos os interesses envolvidos, e, principalmente, chamar as coisas pelos nomes, e tratar as pessoas como pessoas. Por muito que se insista em "pedir" uma barriga, por muito que se insista em "dar" a barriga, temos assistido ao filme, e à Medicina que assim se comporta. E também às leis que tudo enquadram. Não é famoso. Como gosta de repetir uma amiga minha: é um quadro de miséria. Mortal, mesmo. Sim, mesmo que eu seja a generosa amiga que empresta a barriga (e outros "cenários" reais poderia aqui referir), é caso para cantar a música pimba: "E quem é, quem é, e quem é, quem é, a avó da criança?" Mais, o bebé já crescidinho, transportando em si "carne" que é também de terceira (os médicos explicam melhor esta parte das interacções e transformações biológicas nos nove meses), estremecerá sempre ao ouvir Caetano Veloso perguntar: "Onde está você agora?". E não será seguramente o único a ter gravada essa pergunta, que é uma ferida no coração.
Mestre em Filosofia pela UCP
Não é novidade que as pessoas se deixem alugar e vender. É tão antigo quanto o mundo. Já alugar barrigas é coisa contemporânea, devida, por um lado, aos avanços da ciência e, por outro, a necessidades ou desejos de alguns. A Fundação Gulbenkian discute o tema e o Parlamento prepara-se para tocar na Lei da Procriação Medicamente Assistida (PMA), no sentido de se incluir essa possibilidade. Isto é, e números redondos: de passar a ser legal uma mulher acolher no seu útero um óvulo de uma outra. Ao fim de nove meses a primeira fica obrigada a devolver à segunda o resultado da gestação. Deste especial aluguer (ou, porque não arrendamento?), saber de quem é o "filho" não constituiria, por certo, problema para o rei Salomão. Nós, de pena mais curta, tecemos algumas considerações, a ajudar ao debate, que no essencial é mais simples que o ovo de Colombo. Que fique claro que não tratamos aqui das intenções das partes, mas tão-só do que está em causa objectivamente. Ou seja, por muito que eu queira, de um envelope vazio não se conseguem tirar vinte euros.Os avanços da Ciência demonstram magnificamente a sua categoria e a daqueles que a tem construído desde que a razão é razão. Concomitantemente, a História possui capítulos de menos elevação, nomeadamente, de quem não a soube utilizar de forma humana, mas apenas como instrumentalização para um fim que nada tem a ver com os do Rei que soube descobrir (utilizando o seu sábio coração), das mães em disputa, qual a que falava verdade. Quer queiramos, quer não, o assunto das "barrigas de aluguer" (BA) não se desliga, pois, da concepção que cada um tem da vida. E até aquele que defende que a concepção da vida sou "eu" que a decido, ou que até não há concepção nenhuma do que seja a vida humana, e que somos todos um nada (ou que para lá caminhamos, gota a gota), é mesmo assim que entende, isto é, é assim que se percebe, a si e aos outros. Erroneamente, claro, porque para se ser "nada" é preciso ser-se alguma coisa. Não preciso de me chamar Santo Agostinho para confessar que o mal é um parasita do bem, tendo apenas realidade moral, e não ontológica. Do nada, nada surge.
Eu posso querer acabar com a minha vida. Eu posso querer matar a vida de um outro. Eu posso querer ter um filho, alugando ou não uma barriga (pode não me apetecer carregar a encomenda, e pedir a outra que o faça). Mas no caso extremo - que é o que está em causa agora - de querer muito tê-lo e a natureza não mo deixar, mesmo nesse caso, tudo se reduz a algo muito simples: é pedir a alguém que seja, durante nove meses, apenas uma barriga. É fazer um contrato - claro que por mútuo consentimento - em que se pede a alguém (pagando, ou não pagando; até porque a generosidade não tem preço) que prescinda dos sentimentos e do entendimento que durante nove meses se geram entre uma mãe e um filho.
Claro que a Ciência pode, a Ciência até pode pegar no bebé antes dos nove meses, e fazê-lo viver. Não é isso. O que está em causa aqui é pedir a alguém que deixe de ser alguém. O consentimento da alugada em nada anula o argumento, embora a sua liberdade seja inviolável. E mais ainda, o que se passa durante o período de gestação na BA - e porque a vida é uma constante surpresa - tem levado, em casos conhecidos, a que o consentimento inicial "morra". Isto é, a mãe alugada vê crescer o bebé no seu seio e transformam-se os dois. Não há mãe que não se surpreenda na primeira ecografia, ou com o primeiro pontapé que leva daquele que nela começa a ter autonomia. Não há bebé (mais uma vez a Ciência a maravilhar) que não reconheça (ainda na BA) a voz e o toque da "dona" da barriga (e também a voz do pai). Sendo um só, são dois. E sendo dois, são um só.
As BA não são um bom negócio para as pessoas envolvidas. Parece, mas não. Queres ser durante nove meses apenas uma barriga? Poder, podes, mas estou a pedir-te o que ninguém merece. Estamos fartos de saber que o dinheiro não paga tudo e que brincar com os sentimentos, as fragilidades humanas, não abona em favor do humano. Ousa saber, sim! Agora, ousa fazer, nem sempre. Mesmo que eu deseje muito uma coisa, é preciso atender a todos os interesses envolvidos, e, principalmente, chamar as coisas pelos nomes, e tratar as pessoas como pessoas. Por muito que se insista em "pedir" uma barriga, por muito que se insista em "dar" a barriga, temos assistido ao filme, e à Medicina que assim se comporta. E também às leis que tudo enquadram. Não é famoso. Como gosta de repetir uma amiga minha: é um quadro de miséria. Mortal, mesmo. Sim, mesmo que eu seja a generosa amiga que empresta a barriga (e outros "cenários" reais poderia aqui referir), é caso para cantar a música pimba: "E quem é, quem é, e quem é, quem é, a avó da criança?" Mais, o bebé já crescidinho, transportando em si "carne" que é também de terceira (os médicos explicam melhor esta parte das interacções e transformações biológicas nos nove meses), estremecerá sempre ao ouvir Caetano Veloso perguntar: "Onde está você agora?". E não será seguramente o único a ter gravada essa pergunta, que é uma ferida no coração.
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