Ontem

Visão | 01.09.2016
António Lobo Antunes

A quimio, muito dura de facto, foi tremenda. Felizmente, depois de dois ou três dias de um mal estar enorme eu conseguia escrever. Aguentei. Sabe Deus como aguentei. As enfermeiras do Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria ajudaram-me muito

Ontem fui à consulta de Oncologia do Hospital de Santa Maria e devo possuir de facto a saúde de aço que me dizem que tenho: aos oito meses entrei subitamente em coma com uma meningite. Os meus pais eram então muito novos, com vinte e tal anos, ele era médico havia pouco tempo e estava em Lagos, com a mulher e o garoto, a fazer a tropa num quartel qualquer. Imagino a angústia que foi viajar de Lagos até Lisboa, sem automóvel, com poucos comboios e um bebé em coma nos braços. Lagos-Faro e depois Faro- -Lisboa, o que significou quase um dia de viagens ronceiras e esperas com o seu menino a morrer. Ao chegarem levaram-me directamente para o Hospital de Santa Marta, nessa época o hospital escolar, e foi o meu pai quem me enfiou uma agulha na espinha
(chama-se a isso punção lombar)
para, retirando-me líquido e examinando-o depois ao microscópio, saber qual era o micróbio que me estava matando. É necessário uma coragem excepcional para fazer isto ao próprio filho. O meu pai examinou o líquido ao microscópio, encontrou meningococos, falou com o professor de Pediatria e, pelo que me contaram, começou a dar-me injeções na barriga. O irmão do meu pai morreu mais ou menos com a idade que era a minha então e ele tinha isso bem presente, enquanto o meu avô prometia a Santo António levar-me a fazer a primeira comunhão a Pádua no caso de me salvar. A minha mãe contava que pouco depois do início do tratamento comecei a palrar e a sorrir. Lembro-me com uma nitidez absoluta da ida a Pádua, do meu avô me mandar colocar a mão no túmulo do Santo, de colocar a sua ao lado da minha, e das lágrimas
(nunca o vira chorar nem tornei a vê-lo chorar)
que lhe desciam pela face. Como se isto não fosse suficiente aos três anos adoeci de tuberculose. Havia um vizinho tuberculoso e parece que eu gostava muito dele e passava o tempo a fugir para lá. Da tuberculose recordo-me. Dos inumeráveis dias da cama, das minhas tias aflitíssimas porque eu não comia e de um mal-estar e uma impaciência constantes. Também me salvei e existe em mim, inabalável, a convicção que Santo António deu uma mãozinha nesse assunto. Quem quiser que faça troça de mim por julgar assim: estou-me bem cagando. Acho que o Santo não se zanga que eu use esta expressão, ele que não era para graças, como também não era por acaso que São Francisco de Assis o tratava por “meu santo bispo”, expressão que não se conhece haver usado com mais ninguém. Depois as coisas foram andando, como andam sempre mesmo que fiquemos parados, até que há mais ou menos dez anos, estava eu no México para receber o prémio Juan Rulfo e comecei a deitar sangue pelo rabo e a ter diarreia. O meu editor espanhol achava que era aquilo a que os mexicanos chamam “a vingança de Montezuma”, mas eu sentia-me cada vez mais fraco e o sangue continuava. Já em Portugal a Leonor, minha amiga e meu Anjo da Guarda, insistia que eu fizesse uma colonoscopia, depois de haver tentado, sem resultado, um ou dois antibióticos e eu, ciente de que era um cancro, resistia por puro medo, escondido atrás da tal vingança de Montezuma, de hemorróidas, de mais desculpas cobardes, até que o sofrimento me obrigou a aceitar. Mal acordei da sedação perguntei
– Tiraram-me as hemorróidas?
resposta
– Não são hemorróidas
pergunta
– Então o que é que eu tenho?
resposta
– Um cancro
e eu, já não pergunta, pedido
– Chamem o Henrique
ou seja o Professor Henrique Bicha Castelo a quem quero como a um irmão e ele veio. Já não saí do hospital e na manhã seguinte estava na sala de operações. Antes de entrar senti que me apertavam a mão. Era o Henrique e não imaginam o que estar de mão dada com ele representou para mim. Henrique, sabes o amor e a gratidão que te tenho e nunca poderei pagar. Foi uma intervenção difícil e um pós-operatório horrível: noites e noites, sempre cheio de tubos, a olhar a janela na certeza que a manhã me viria salvar. Não me salvou de nada. Passei dezoito dias tenebrosos no hospital, e depois radioterapia, e depois quimioterapia, tratado por um médico e homem excepcional, o Professor Luís Costa. Depois exames de três em três meses, depois exames de seis em seis meses, o calvário habitual e aqueles dois homens com a ajuda de Santo António, curaram-me. Mas, como eu fumava, o Luís seguia de olho em mim e numa Tac a Professora Isabel Távora detectou-me um cancro em cada pulmão. O doutor Jorge Cruz
(vejam só a sorte que tenho em encontrar pessoas de qualidade)
operou-me: eram cancros diferentes, de um lado um espino-celular, do outro um tumor de small-cells que, quando eu era estudante, significava uma morte mais ou menos certa. O Professor Luís Costa disse-me
– Vou fazer-lhe quimio muito dura, se você aguentar fica curado
enquanto eu pensava que o pai da minha mãe morrera de um cancro no intestino, como o meu, e o pai do meu pai, o que me levou a Pádua, de um cancro no pulmão, ambos com exatamente a idade em que apareceram os meus. A quimio, muito dura de facto, foi tremenda. Felizmente, depois de dois ou três dias de um mal estar enorme eu conseguia escrever. Aguentei. Sabe Deus como mas aguentei. As enfermeiras do Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria ajudaram-me muito com a sua competência, o seu cuidado, a sua extraordinária correção, atrevo-me a dizer que com a sua amizade, a enfermeira-chefe, a Senhora Dona Clara, tratou-me com uma ternura de irmã, as pessoas que sofriam, na mesma sala, as mesmas fezes que eu, faziam-me sentir orgulhoso de ser português: eram extraordinárias de serenidade e coragem
(isso já eu encontrara na guerra)
e revoltava-me ver a gente do meu País tão mal tratada pelo Poder, pelos políticos, pelo teatro macabro da maior parte dos governantes, pela miséria em que o nosso Povo é obrigado a viver, e vive com infinita dignidade. Merecemos melhor que isto. Mas essa conversa fica para outra altura porque ontem fui à consulta de Oncologia do Hospital de Santa Maria. Os cancros desapareceram, as análises estão óptimas. Talvez consiga acabar o meu trabalho. Só necessito de mais quatro anos para isso, conforme deixei escrito na última crónica. E depois parafraseando um cenógrafo da televisão para os seus subordinados, pintem-me da cor que quiserem desde que seja azul.

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