Quem não deve não teme? Snowden discorda

Graça Canto Moniz
ionline 20160927

“Snowden”, de Oliver Stone, não é sobre um banal whistleblower. É um filme sobre um patriota, um admirador de Ayn Rand, um homem dedicado ao seu país que, com o passar do tempo, se apercebe da profundidade dessa sua ilusão. A fórmula usada neste filme não é inovadora, já a encontrámos de forma vincada no clássico sobre o Vietname “Born on the Fourth of July” (1989).

“Snowden” tem informação, dados. Computadores e vigilância. É esse o tema principal do filme (e o maior contributo de Snowden): a forma como as agências securitárias norte americanas, abençoadas por Obama, estão autorizadas, de forma discricionária e não sujeita ao controlo democrático, a monitorizar e violar a privacidade de quem entendam, sem terem sequer de justificar os critérios adotados na sua ação vigilante.
Aos que pelos dias de hoje defendem a filosofia simplista do “quem não deve não teme”, recomendo que vejam o filme com atenção, em particular o diálogo em que Snowden (interpretado de forma magistral por Joseph Gordon-Levitt) alerta a sua companheira para os perigos de não tapar a câmara do seu computador portátil. O filme e esta cena em especial recordam-nos que a privacidade não serve primariamente para proteger um “segredo” ou lançar um manto de fumo sobre aquilo que ilegitimamente queiramos esconder. Os seus defensores mais acérrimos. que como eu, fazem dela objeto de estudo, têm consciência de que a privacidade é um valor estruturante da pessoa humana, é um valor em si. Tem, assim, um sentido ontológico, caracterizando-se pela sua incomunicabilidade: a estrutura da pessoa é una e total, fechada, absoluta, impartilhável.
Quando se defende a privacidade, o que se visa proteger é o direito que cada um tem de construir o seu próprio ser, em diálogo consigo mesmo, assente na faculdade – mas não na obrigatoriedade – de partilhar com o mundo quem é, como é e como quer ser, para que o mundo compreenda, exclusivamente através e a partir de si, quem se quer ser ou quem já se é. Prima facie, esta é uma escolha exclusiva que compete a cada um definir: o que partilha, o que diz, o que mostra, como se dá a conhecer aos outros, sem que daí se deva concluir pela ilegitimidade da ação ou omissão. Podemos admitir não ser este um valor absoluto, como não são em sociedade todos os restantes valores estruturantes da pessoa humana, como a liberdade ou a propriedade.
As suas limitações, porém, devem ser excecionais e bem justificadas, em função e à luz dos princípios da proporcionalidade e da necessidade. A privacidade traduz-se também no direito que temos de controlar a nossa imagem, a forma como a projetamos no mundo, e a nossa identidade. É esse controlo que nos permite escolher as relações que temos com os outros, de amor, de amizade, de partilha de sonhos, dúvidas, inseguranças, pensamentos e ideias. É isso que nos permite ter controlo sobre a construção da nossa personalidade. Como diz o próprio Snowden, a privacidade é o “right to the self”. E foi a este amparo fundamental e natural do homem, enquanto ser social, que Snowden, com muitas e difíceis escolhas pessoais, dedicou a sua vida. Bem haja.

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