O jogo mudou

João César das Neves
DN 20160922

Portugal parece regressado a 2010. A economia cresce, mas quase nada; o Orçamento diz-se controlado sem estar; o governo garante solidez, mas não se sabe quanto; os bancos aguentam-se, sem convencer ninguém. Vive-se o clima de acalmia antes da tempestade. Nesta morna ambiguidade passou despercebido que tudo mudou a 23 de Junho.

O resultado do referendo britânico acerca da permanência na União Europeia lançou uma nova fase na história da integração comunitária. Ninguém ainda sabe as consequências deste complexo processo, mas é evidente que a vida dentro da Europa não voltará a ser a mesma. Os cenários são muitos, com só uma coisa certa: nos choques, é nas rachas que se sente maior tensão.
Paradoxalmente, o Reino Unido é capaz de não ter grandes consequências. Fora do euro e do espaço Schengen, manteve um estatuto especial nos sucessivos tratados. Se a negociação optar por um modelo de associação próxima, semelhante ao da Noruega, poucas mudanças reais acontecerão na prática. Pelo contrário, o velho aliado Portugal está na posição mais delicada. O nosso país pode vir a ser a principal vítima do brexit.
A saída da Grã-Bretanha, mesmo sem grandes repercussões socioeconómicas, representa um grande choque político e simbólico. Depois de 60 anos de sucessivas adesões, o grupo começa a desfazer-se. Isso não significa uma União menos coesa. Pelo contrário, a deserção britânica motivará certamente um surto de empenho e compromisso. Com ele crescerá a suspeição à volta dos que pareçam menos diligentes, inclinados a futuros abandonos. Neste clima de "refundação da Europa", que surge em vários círculos, a violação das obrigações comunitárias pesará muito mais do que todas as juras de fidelidade. Isto coloca Portugal na primeira linha dos suspeitos.
Pertencemos claramente ao grupo dos faltosos, sem nenhuma das desculpas dos demais. Não estamos desesperados, como a Grécia e Chipre, o que os coloca na enfermaria. Não somos fundadores como a Itália nem grandes como a Espanha. Já cá andamos há muitas décadas, ao contrários dos países de Leste, e violámos os nossos compromissos todos os anos desde a entrada no euro. Somos o candidato ideal a bode expiatório. A conclusão só pode ser que, quase de certeza, veremos nos próximos meses evaporar-se aquele clima de benevolência de que gozámos nos últimos anos.
Falar de benevolência pode parecer escandaloso a quem acompanha o comentário político nacional, habituado a culpar a Europa de todos os males. Mas realmente, vendo as coisas do outro lado, a imagem inverte-se. Foi a benignidade europeia que, por exemplo, levou a troika a aprovar-nos em todas as suas avaliações, apesar da nossa transgressão descarada de todos e cada um dos limites previstos no memorando de entendimento de 2011. Na altura interessava à Europa registar um sucesso no Sul do continente, para contrastar com as desgraças helénica e cipriota. Isso era antes de 23 de Junho.
A verdade é que nós somos um dos maiores, senão o maior, beneficiário da integração europeia entre os 28 membros. Entrado em 1986, antes de começar a enxurrada de legislação comunitária, em que pôde ter influência, Portugal foi o que mais cresceu nos primeiros dez anos da adesão. O país transformou-se numa sociedade moderna e desenvolvida graças à UE. Este ponto, que anda muito esquecido, é perfeitamente evidente e decisivo.
Até a entrada no euro constituiu um benefício evidente. Como coincidiu com o início da decadência, nas análises populares é normalmente acusada da crise. Mas aqueles que anseiam pela nossa saída da moeda única nunca dizem como teríamos suportado a crise internacional sem a âncora do euro, ou como hoje o governo conseguiria financiar-se afastado do BCE.
Se é verdade que somos um clamoroso beneficiário da União, também é evidente que somos um descarado infractor das regras comunitárias. Prometemos repetidamente aquilo que nunca pensávamos cumprir e hoje, com a retórica antiausteridade no discurso oficial, já nem fingimos obediência. Por isso é que é urgente perceber que o jogo mudou em Junho. Aliás o processo que sofremos em Julho, e que a benevolência ainda nos perdoou, foi um primeiro sinal disso mesmo. Para o ano haverá novo processo, e não será tão fácil.
As luminárias lusitanas nunca admitem a bonomia europeia, demasiado ocupadas a atribuir à austeridade todos os males nacionais. Mas é bom que alterem drasticamente a atitude. Sob pena de verem os seus desejos realizados e Portugal sem troika, sem euro, sem Europa e sem rumo.

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