A letícia dentro da normalidade I - Os colegas
INÊS AVELAR SANTOS REVISTAPASSOS.PT 11.01.17
Os colegas
Já estava sentada à secretária quando recebi a mensagem – o Pedro Aguiar Pinto morreu de madrugada. Estava a caminho de Fátima pelo 20.o ano consecutivo, numa peregrinação que organizava com a Joana e outros amigos. Eu não conheci o Pedro para além do olá e adeus devido de vez em quando, mas a amizade à Inês e ao Gonçalo fez com que a notícia me incomodasse o suficiente para não conseguir continuar a trabalhar sem fazer contas com o que tinha acontecido. Lembrei-me que o António – com quem trabalho – certamente o conhecia. Desci ao 4o andar. “Já soube?”. “Já... E estou aqui um bocado embatucado, sabe... O Pedro tornou-se um amigo especial meu e da Filipa nos últimos anos.” ... “Rezamos um terço antes do almoço?”. Assim fizemos. E o meu dia continuou, mais tranquilo e expectante.
Quem é o Pedro Aguiar Pinto? Esta pergunta foi o livre-trânsito que me permitiu entrar pelo luto adentro de quem o conheceu de perto, levando-me do Instituto Superior de Agronomia (ISA) a sua casa, passando pelo Hospital de Santa Maria (HSM).
À mesa com os colegas. Naquela terça-feira juntei-me ao tradicional almoço semanal de alguns professores do ISA, ao qual o Pedro não faltava. Zé, vizinho de gabinete e amigo de uma vida,temos estes almoços todas as terças-feiras. Vai acontecendo, vem quem vem... É uma
maneira de falarmos sobre os assuntos da faculdade.
Nascido no Porto em 1955, Pedro vem para Lisboa para estudar Agronomia no ISA em 1972. O gosto pela vida académica leva-o, ainda enquanto aluno, a tornar-se monitor de matemática e, findo o curso, até à Universidade da Califórnia, onde completou o seu Doutoramento, sob orientação de um dos professores mais conceituados na área de modelação de sistemas – Richard Loomis. Volta para o ISA, em 1985, trazendo na mala o mais avançado estado da arte nesta área, e uma tese em modelação de sistemas de produção de batata.
A opinião à mesa é unânime: “Era uma tese pioneira. Na altura em Portugal havia algumas pessoas a trabalhar a modelação, mas não a esse nível. Quando ele veio criou-se aqui uma disciplina nova de sistemas de modelação, que ainda faz parte do programa de mestrado dos agrónomos”. Zé acrescenta que “o Pedro percorreu todos os passos da carreira académica de forma rápida, chegou a catedrático e em todos os concursos a que concorreu foi sempre aprovado com mérito absoluto: uma carreira brilhante!”
Da outra ponta acrescentam “Era uma pessoa também muito interventiva na escola, preocupada com os alunos e com aquilo que estava a acontecer no mundo em geral e gostava de intervir, sempre ligado às tecnologias! Percorreu os órgãos todos da casa!”
As aulas. Dos slides das suas aulas faziam frequentemente parte passagens do Génesis. Pergunto-lhes porquê. Essa era uma das características que distinguia o Pedro, procurava sempre enquadrar
as coisas numa perspectiva mais total e até filosófica, a origem das coisas, o porquê das coisas. E
punha sempre essa nota em praticamente tudo o que fazia!”. Nas aulas, “usava muito a etimologia
das palavras. Sempre que colocava uma palavra em cima da mesa, normalmente fazia uma citação
do dicionário e depois a partir daí evoluía para aquilo que queria transmitir aos alunos”.
A seguir ao almoço, subo com Zé ao Chalé onde fica o gabinete que foi do Pedro. À entrada
encontramos Lurdes. Para além da sua presença tímida, também o sentido de humor de Pedro era discreto. Para Lurdes, ele tinha um
humor muito inglês. Estava muito bem e às vezes saía-se assim com umas que as pessoas se não
estivessem atentas não apanhavam!” Conta um exemplo... “Havia um aluno que chegava sempre
atrasado às aulas, era inteligente, mas era um bocadinho descompensado e o professor prezava
muito as horas. Um dia o professor ofereceu-lhe um relógio. Olhe foi o máximo! Comprou o relógio e
ofereceu ao aluno, com aquele ar dele calmo...!”. No letreiro que está pendurado à porta do gabinete do Pedro, lê-se: “My garage, my rules” ...
O almoço no fim das colheitas. Todos os anos os professores da secção do Pedro organizam uma
sardinhada/churrascada no Chalé do ISA, por altura do fim das colheitas dos cereais, para docentes,
funcionários e convidados. “O Pedro gostava imenso disso e fazia questão”, conta Zé. De tal
maneira que pagava do próprio bolso se fosse preciso. “Ele tinha muito essa preocupação, de
passar testemunho de algumas tradições. E este almoço era também uma maneira de agradecer
aos mais velhos que já tinham partido, que já estavam aposentados e agradecer”. Lurdes
acrescenta: “ele gostava, gostava de ver, de ver as pessoas a darem-se bem, passava, gostava de
estar presente! É uma pessoa que nos faz muita falta!”.
Para Zé, o Pedro “tinha clara a noção de que há coisas que estão acima dele, um sentimento do que
é bom para a comunidade onde está inserido, mesmo que não apeteça”. Um gosto pela tradição
livre de formalismos... “Este ano não organizou, ou melhor não fez o almoço, cancelou – estava
tudo organizado –, porque um dos meus filhos teve um acidente muito grave e então ele achou que
não devia haver almoço”.
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