O regresso de Sócrates
Rui Ramos
Observador 23/9/2016
Porque é que Ana Gomes parece ser a única socialista à vontade para dizer em público o que deve ser dito, isto é, que José Sócrates, pelo que admitiu, não deveria ter lugar na vida do regime?
É o regresso de José Sócrates. O regresso oficial. Depois dos comícios na província, depois das invasões de palco durante visitas do primeiro-ministro e do presidente da república, eis o convite oficial e legítimo para participar num “evento institucional” do Partido Socialista, hoje, sexta-feira. E perante este regresso, que diz o líder do PS e primeiro-ministro, António Costa? António Costa não diz nada, mas constou na imprensa que estaria “confortável”, porque não tenciona frequentar o referido “evento”. Para António Costa, tudo parece estar bem desde que, ao contrário do presidente da república, não tenha de aparecer com Sócrates na fotografia.
Os defensores de José Sócrates vêm sempre com figuras jurídicas: não foi condenado, ainda nem sequer foi acusado, é apenas arguido sob investigação, deve ser presumido inocente. Quantas vezes será necessário explicar que na vida pública há comportamentos que não precisam do trânsito em julgado para deverem ter consequências? Deixemos de lado as suspeitas de corrupção, branqueamento de capitais e fuga ao fisco, de que trata a justiça. Deixemos de lado as suspeitas, levantadas outrora por alguns magistrados, de conspiração contra o Estado de direito, de que ninguém trata. Fiquemos apenas, como fez a eurodeputada Ana Gomes, pelo que o próprio já admitiu: Portugal teve, durante vários anos, um chefe de governo na dependência financeira secreta de um empresário ligado a um grupo com contratos com o Estado. É isto aceitável? Já uma vez dei este exemplo: na Inglaterra, um ministro de Tony Blair, Peter Mandelson, teve de se demitir em 1998 por não ter revelado que um colega de governo lhe tinha emprestado dinheiro. Um colega de governo, não o empresário de um grupo interessado em negócios com o Estado. Outros costumes, outro mundo.
Foi esta semana muito discutida a possível conversão do PS de António Costa às ambições de expropriação fiscal do Bloco. Mas a incapacidade deste PS de sacudir o socratismo devia-nos preocupar outro tanto. Que se passa? António Costa não se importa? Ou, importando-se, não sente força ou não acha oportuno limitar as incursões socráticas? Que poder ainda tem José Sócrates no PS? Qual é a origem desse poder? Porque é que Ana Gomes parece ser a única socialista à vontade para dizer em público o que deve ser dito, isto é, que José Sócrates, pelo que já admitiu, não deveria ter lugar na vida pública sob o patrocínio de partidos ou figuras do regime? E se isto é assim, que devemos pensar deste PS e da autoridade de António Costa?
José Sócrates faz o que julga convém aos seus interesses, e naturalmente que convém aos seus interesses criar a impressão de que, no regime, ninguém leva a sério o inquérito judicial, tanto que não se inibem de o cumprimentar, convidar e homenagear. D. Sebastião deveria ter regressado numa manhã de nevoeiro. José Sócrates regressa num crepúsculo de confusão moral. É a complacência da direcção do PS, que se limita a não tirar selfies com o arguido; é a indiferença dos outros partidos, que nada dizem; é a excitação da imprensa, que lá há-de estar para lhe ampliar as lições; é provavelmente o cansaço de toda a gente, que há anos ouve falar de Sócrates e dos seus casos. Chegou a vida pública portuguesa àquele grau de tribalismo em que aos do nosso lado tudo é admitido e desculpado, e a ética na vida pública só se aplica aos nossos adversários? Ou pura e simplesmente já ninguém quer saber de nada, neste cada vez mais óbvio desmanchar de feira, em que uma classe política se prepara para legar aos vindouros não só a enorme dívida de um Estado desequilibrado, mas um tremendo vazio moral?
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