Os militares não são deste tempo?

Helena Matos
Observador 11/9/2016

Já se comparou a polémica que rodeia a morte de militares durante a instrução com o silêncio que acompanha as mortes súbitas de desportistas?
Após a morte dos candidatos a comandos começou uma sequência de declarações, desmentidos e novas declarações que dão conta de como é cada vez mais difícil justificar a instituição militar, como esta divide os partidos que apoiam o Governo e como, em consequência disso, a extinção dos Comandos chegou a ser ponderada.
Escrevo que a extinção dos Comandos chegou a ser ponderada não por Catarina Martins ter vindo pressurosamente exigi-la. É óbvio que o fez e fará sempre, pois para o BE os militares devem ser ou uma milícia ou uma ONG, sendo que para mais os Comandos têm aquele senão de oficialmente terem derrotado a esquerda radical no 25 de Novembro de 1975. (Não desmerecendo no valor dos Comandos, em Novembro de 1975 não foi apenas Jaime Neves quem veio para a rua, também houve, à esquerda, quem ficasse em casa, como Otelo, ou quem não deixasse os seus homens sair, caso de Rosa Coutinho. Afinal, em Novembro de 75, depois de ter feito o que queria em África e de garantir em Lisboa os cargos institucionais e administrativos que por largos anos lhe dariam uma influência que nenhum desaire eleitoral abalaria – qualquer semelhança com os tempos presentes não é coincidência – o PCP já não precisava da extrema-esquerda para nada.)
Mas, e voltando ao facto de a extinção dos Comandos ter sido quase decidida, se aos considerandos de Catarina Martins juntarmos as declarações do porta-voz do Exército anunciando que todas as hipóteses estavam “em cima da mesa” a propósito da suspensão dos cursos de Comandos, percebemos que a líder do BE não falou no vazio. Houve ainda uma fonte oficial do Ministério da Defesa respondendo ao Expresso, quando questionada sobre o fim dos Comandos: “Está tudo em aberto”. Para finalizar, o Presidente da República, por inerência Comandante Supremo das Forças Armadas, achou apropriado ao seu cargo declarar que “será apurado tudo até às últimas consequências”. O português é de facto uma língua traiçoeira e a expressão “até às últimas consequências” não é neutra de modo algum. Note-se que o PR não falou de causas. Falou sim de consequências e só de consequências, num momento em que, acreditávamos nós, se procuravam apurar as causas. Que consequências eram essas?
Entretanto, a roda livre das palavras inverteu o sentido e agora todos, à excepção do BE, garantem que os Comandos não vão ser extintos. Em resumo, extinguir os Comandos chegou a ser ponderado mas essa extinção era ceder demasiado ao BE, que tem manifestado um interesse constante pelo que se passa nos quartéis e já saíra triunfante do caso do Colégio Militar, em que, recorde-se, Marcelo Rebelo de Sousa aceitou, como se isso fosse um mero acto administrativo, o pedido de demissão do Chefe do Estado-Maior do Exército, general Carlos Jerónimo.
Por agora, a não ser que uma nova declaração ou facto alterem substancialmente as circunstâncias, os Comandos continuarão a existir. Mas eles em particular e a instituição militar no seu todo são uma espécie de corpo estranho, pois à força de se se confundir paz com pacifismo (nada mais perigoso) acabámos sem perceber para que servem os militares. E não, este não é um problema que decorra de termos radicais no Governo. Claro que sempre que se fazem alianças com radicais tem de se lhes entregar sectores em que estes, dando asas à fúria inquisitorial que os anima, acabem a ganhar espaço: a polémica em torno dos colégios com contratos de associação é um bom exemplo dessa espécie de fatalidade. Mas a incompreensão em torno dos militares é muito mais profunda. Claro que um destes dias o PAN pode entrar em transe quando ouvir o grito “Mama Sume” dos Comandos, que era também o grito que se fazia ouvir aos jovens Bantu aquando da caça ao leão. E, naturalmente, uma qualquer comissão de género partirá, se tiver luz verde para tal, numa cruzada histérica por causa das referências às namoradas nos hinos militares. Mas, para lá deste folclore, as sucessivas fantasias que alimentamos sobre as forças armadas dão conta de algo que se chamaria decadência caso fossemos capazes de chamar as coisas pelos nomes.
Tivemos a fase das forças armadas enquanto barbudos distribuidores de flores. O resultado foi mais ou menos o caos e a institucionalização da violência. Mas ficámos com belas fotografias. Depois as flores ficaram para as floristas, as barbas para os barbeiros e os militares voltaram aos quartéis. Anos depois, extinguia-se o serviço militar obrigatório – rapar o cabelo e fazer flexões estava ao nível da tortura! – e apostava-se na excelência das forças especiais. Tudo foi feito ao sabor das modas e dos votos: agora que a Europa se debate com o fanatismo de milhares de jovens, questiona-se em países como a França a reintrodução do serviço militar obrigatório, não para que os recrutas combatam os terroristas, mas sim para que a ida à tropa faça aos jovens fanatizados aquilo que fez outrora a milhares de mancebos – integrá-los. Afinal, se do ponto de vista militar o serviço militar obrigatório não é hoje muito interessante há que ter em conta que quando se fecharam os quartéis se fechou também a instituição mais transversal da sociedade.
Mas voltemos à extinção do serviço militar obrigatório. Dava-se então como inquestionável que poderiam e deveriam existir forças especiais. Espantosamente (ou talvez não) dessas forças especiais tínhamos como actuações mediatica e publicamente aceitáveis os desfiles e as missões de paz. Sendo que por missões de paz se entendiam invariavelmente duas coisas: cozinhar bacalhau com couves no Natal, estivessem e estejam os militares onde estiverem, e a distribuição agora não de flores mas sim de medicamentos e comida.
Após o 11 de Setembro, passou a admitir-se que as tropas especiais (nunca as nossas, mas sim as de outros países) poderiam fazer outro tipo de operações além das reservadas à Cruz Vermelha. Chegou até a fantasiar-se que bastaria usar tropas especiais para assegurar a paz no mundo (Como bem se vê no caso da Síria, este tipo de intervenção poupa os militares, poupa os governos mas está longe de poupar os civis). A estas fantasias sobre a natureza e o impacto das operações feitas unicamente por tropas especiais veio juntar-se, em países como Portugal, a particularidade de ser cada vez mais difícil compatibilizar o funcionamento, a hierarquia e os valores das forças armadas, sejam elas constituídas por tropas especiais ou não, com sociedades em que os jovens apenas podem receber ordens se estiverem num programa de talentos culinários. Já a avaliação está reservada aos concursos televisivos. As vicissitudes do clima só as podem enfrentar nos festivais de verão. Desastres e acidentes resultantes do esforço físico só se toleram (e calam) caso os jovens sejam praticantes de um qualquer desporto, de preferência rentável ou medalhável. Já se comparou a polémica que rodeia a morte de militares com o silêncio que acompanha as mortes súbitas de desportistas?
Parece-me óbvio que aquilo que aconteceu neste curso de Comandos tem de ser investigado e corrigido o que tiver de ser corrigido. Mas por trás desta polémica o que temos é o resultado do populismo com que ao longo de anos se tem tratado a instituição militar.

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