A armadilha
Helena Matos
Observador 26/9/2016
Como é possível que, vivendo nós aprisionados nas sucessivas ondas de indignação-condenação promovidas pelos radicais, não vejamos os moderados a ser capazes de trazer os seus assuntos para o debate?
30 de Outubro de 1793. A guilhotina espera-os. Tudo aquilo que nos últimos anos os aproximou e separou está-lhes consumado nos rostos. É como se ainda acreditassem que a sua verve os tornará imortais. Que no fim se lhes fará justiça. Que talvez o povo compreenda… Não sabem ainda que o silêncio e a indiferença serão a sua companhia no percurso que dentro em poucas horas os levará da prisão até ao cadafalso.

“O último jantar dos Girondinos” – é esta a designação por que se conhece este quadro – retrata com alguma liberdade a última refeição de um grupo de deputados que, também com alguma liberdade, podemos definir como moderados, durante a Revolução Francesa. A Revolução Francesa é o tempo a que temos de voltar sempre (ou pelo menos eu volto) quando se procura entender a causa não apenas da insanidade que em dados momentos parece apoderar-se das sociedades mas sobretudo confrontar a incapacidade dos moderados, frequentemente superiores em votos e apoios, para travarem, antes do desastre, a vertigem destruidora que os radicais impõem aos demais.
Este quadro encerra o drama da França em 1793 e o drama das sociedades que, como a portuguesa, têm a sua matriz na Revolução Francesa: como é que os radicais, invariavelmente minoritários, acabam a exercer o poder e a impor as suas agendas? Como é que não há uma iniciativa, uma proposta, uma mudança que não acabem integradas nas agendas dessa gente que tem como fim não melhorar o sistema mas sim destruí-lo? Como é que os moderados se deixam cair na armadilha dos radicais, acabando invariavelmente a fazerem belos discursos entre si, enquanto lá fora as vítimas da demagogia se amontoam? E sobretudo como é possível que, vivendo nós aprisionados nas sucessivas ondas de indignação-condenação promovidas pelos radicais, não vejamos os moderados a ser capazes de trazer os seus assuntos para o debate? Esse torpor com que as sociedades assistem à destruição dos valores da moderação quando em simultâneo vivem momentos de exaltada indignação perante qualquer facto ou tema que venha do lado radical é um dos principais factores de desagregação do que de mais civilizado existe no mundo pós Revolução francesa. O nosso mundo.
Por exemplo, como entender tendo em conta o alarido que acompanha tudo o que se prende com a segurança na saúde que, além deste artigo de Luis Carvalho Rodrigues, tenha passado quase em silêncio o pedido de demissão do presidente do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST)? Como recordou aqui mesmo no Observador Luis Carvalho Rodrigues, o presidente do IPST, professor Hélder Trindade, “foi mandado comparecer no parlamento para explicar às luminárias do BE as razões de um abuso inaudito: apesar da proibição de incluir nos questionários feitos aos dadores de sangue perguntas sobre o seu comportamento sexual, tais perguntas continuavam a ser feitas. O professor Hélder Trindade bem tentou explicar que há uma diferença entre “orientação” sexual e “comportamento” sexual, e que o “contacto sexual de homens com outros homens” (e não a orientação hetero ou homossexual) comporta um risco especialmente elevado para doenças como a SIDA: não se livrou da acusação de preconceituoso e homofóbico. Que as suas posições fossem suportadas por todos os estudos epidemiológicos dos últimos trinta anos foi absolutamente irrelevante para os seus inquisidores.”
Nascerá este silêncio do medo de ser considerado “preconceituoso e homofóbico”? Talvez, mas não só. Perante o tropel de absurdos, ridículos e grosserias, instala-se um misto de fatalismo e cansaço. Para que serve contestar agora aquilo que mais cedo ou mais tarde os radicais irão acabar por fazer passar? Há seis anos que o BE apontara o Instituto Português do Sangue como um dos seus objectivos. E logo todos percebemos que mais cedo ou mais tarde levariam a melhor no seu propósito de impor que se subestimassem os conhecimentos sobre a existência de grupos de risco nas dádivas de sangue.
É certo que, quando em 2010, o BE fez a sua primeira proposta para que se acabasse com a “discriminação” inerente a considerar a promiscuidade sexual dos potenciais dadores de sangue como factor de risco, o então presidente do Instituto Português do Sangue, Gabriel Olim, declarou aos jornalistas alto e bom som: “A proposta do BE choca com tudo o que é realidade internacional. Quero saber no que é que se basearam para elaborar essas recomendações.” Seis anos depois, o presidente do Instituto Português do Sangue e da Transplantação acabou a pedir a demissão e já ninguém perguntou porquê. Nem há tempo porque amanhã outro nome estará na berlinda para – caso não faça o que lhe é devido – se tornar no bombo da festa dessa encenação jacobina da luta dos bons iluminados conta os maus das trevas da reacção.
Uma encenação cujo guião é o do vale tudo e o seu contrário. Lembram-se da igualdade entre o sexos? Pois as activas feministas que outrora combatiam pelos direitos das mulheres agora nem querem ouvir falar de mulheres nem de homens e arengam sobre o género. Ao certo não se sabe quantos são os géneros, ou se todos os géneros convergirão num único género nem como se atinge a igualdade de género mas ai de quem mostrar dúvidas. Isto naturalmente portas adentro culturalmente falando porque se se estiver a falar dos muçulmanos, que como se sabe estão livres do pecado original do patriarcado cristão, a libertação passa por tolerar que nas cidades europeias as mulheres andem de rosto completamente tapado e sejam atendidas por equipas médicas exclusivamente femininas. Confuso? Pois mas o melhor é não dizer nada porque logo vêm as acusações de intolerância e preconceito.
E de racismo podemos falar? Sim mas apenas para referir a discriminação que os brancos exercem sobre os negros. O contrário não existe. Muito menos se pode abordar o racismo entre os negros – são “diferenças ancestrais”. Ou por exemplo, o papel que, no continente africano, os muçulmanos tiveram na escravatura: para boa parte dos alunos das nossas escolas a escravatura é uma invenção e um exclusivo dos brancos para com os negros. No ponto a que chegámos já não lhe chegam o presente e o futuro. O próprio passado tem de ser revisto, como se em qualquer tempo ou lugar do mundo os bons fossem projecções dos nossos activistas de hoje: os westerns agora incluem mulheres comboys e também negros e chineses em iguais desempenhos e qualquer rainha de um país católico no século XIII passa a feminista avant la lettre.
Na verdade não admira que os radicais explorem à exaustão todas as hipóteses de discussão generosamente colocadas ao seu dispor pelo sistema que pretendem destruir. O que perturba é a recorrente incapacidade dos moderados para denunciar a sua má-fé. A candura com que embarcam na discussão sobre os chavões de cada momento. Agora estamos na fase do “combate às desigualdades”, uma expressão que nada diz e tudo permite. Sejam os desígnios bolivarianos do primeiro-ministro que cada vez mais longe da matriz democrática do seu partido aposta na radicalização como forma de governação. Sejam as contas pantomineiras da deputada Mariana Mortágua sobre o novo imposto a recair sobre os mais ricos que por via desse tributo irão tornar possível, nas contas tipo cordão humano da deputada, aumentar em dez euros as pensões mais baixas. (Já agora para o próximo ano tributa-se quem, para aumentar de novo as pensões mais baixas que obviamente não deixam de ser as mais baixas? E no seguinte?… Como é óbvio dentro de meia dúzia de anos estaremos a tributar os pensionistas com pensões baixas para custear os aumentos das pensões baixíssimas.) Sejam ainda as acções de pressão do PCP para que o Estado se torne no garante do seu poder: sigam-se com particular atenção as iniciativas já anunciadas, por exemplo, pela CGTP no âmbito do “direito à negociação coletiva”, expressão que traduzida da língua de pau quer dizer reforço do poder dos sindicatos que em cada dia que passa contam com menos filiados e mais garantismos jurídicos.
A incapacidade dos moderados para mobilizar as sociedades para travarem os processos de radicalização leva não só à desagregação da vida comum como que se tenha de esperar pela evidência do desastre – quando não que os próprios radicais desatem a combater-se a si mesmos – como condição sine qua non para que se consiga não acabar com o radicalismo mas colocá-lo no campo que é o seu, o das margens.
Como se vê e sabe o jantar dos Girondinos é uma espécie de refeição interminável para a qual os moderados estão permanentemente convidados.
PS. Depois dos cartazes a promover a amamentação em público pretende a CML agora dinamizar a saída do armário dos homossexuais idosos. Sem querer distrair a CML dessa sua vocação de engenharia social, resta a dúvida: a que entidade cabe conceber passeios e ruas onde as mães, independentemente de amamentarem em público ou não, possam circular com um carrinho de bebé e os idosos, sejam eles hetero ou homossexuais, consigam andar com segurança?
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