Em defesa de Durão Barroso e do ideal europeu

João Carlos Espada
Observador 19/9/2016

Numa velha democracia parlamentar, a tomada de posição de Juncker contra Durão Barroso teria merecido uma gargalhada geral e a sua convocação pelo Parlamento — onde o seu lugar estaria em sério risco.


Já muito terá sido dito sobre o surpreendente ataque a José Manuel Durão Barroso pelo seu sucessor, Jean-Claude Juncker, e por outros responsáveis da União Europeia. Mas não creio que neste caso tenha sido dito o essencial. E — após estupefacção inicial — receio ter de concluir que o essencial possa ser bastante grave: bastante grave a respeito da debilidade das tradições e da cultura política de Bruxelas.
Não vale a pena perder tempo com os detalhes. Mas vale a pena recordar a evidência empírica fundamental. Durão Barroso cumpriu todas as regras gerais até à data definidas pela União Europeia acerca da reforma dos membros da Comissão Europeia. Isso foi claramente reconhecido pelo sr. Juncker e por todos os que até agora se pronunciaram sobre o tema.
Qual foi então o “delito” de Durão Barroso? Segundo o sr. Junker, foi ter escolhido a filial britânica do banco norte-americano Goldman Sachs. Essa escolha é que criou o problema, explicou o sr. Juncker, porque, segundo ele, o Goldman Sachs foi um dos maiores responsáveis pela grave crise financeira iniciada em 2008, além de ter estado envolvido em operações financeiras duvidosas em torno da dívida pública grega.
É francamente inacreditável que o actual Presidente da Comissão Europeia possa ter dito isto. Mas disse. E disse isto para justificar que o estatuto de ex-Presidente da Comissão irá ser retirado a Durão Barroso — apesar de, recorde-se, o mesmo Juncker, na mesma declaração, ter reconhecido que Barroso tinha respeitado as regras gerais de reforma da Comissão.
Numa velha democracia parlamentar, esta tomada de posição do sr. Juncker teria merecido uma gargalhada geral e a imediata convocação do seu autor pelo Parlamento — onde o seu lugar estaria a partir desse momento em sério risco.
O Parlamento recordaria então ao sr. Juncker a distinção fundamental — herdada da Grécia antiga, há 2500 anos — entre governo das leis e governo dos homens. Isto significa que os homens que temporariamente ocupam os governos não podem infringir as leis ou regras gerais, abaixo das quais todos se encontram. “Ninguém está acima da lei” quer dizer isso mesmo.
A questão não está, por isso, em concordar ou não com a opinião do sr. Juncker sobre a maldade do Goldman Sacks. Isso é na verdade irrelevante. Uns estarão de acordo, outros não, e outros ainda serão indiferentes. O ponto reside em que essa é apenas uma opinião — e o facto de ser a opinião do Presidente da Comissão Europeia não altera nada ao facto de ser apenas uma opinião.
Por outras palavras: a opinião do sr. Juncker acerca do Goldman Sachs não estava inscrita nas leis gerais da União Europeia ou, mais especificamente, nas regras gerais sobre a reforma dos membros da Comissão Europeia. Sob o governo das leis, os governantes episódicos não podem alterar regras anteriormente estabelecidas e fazer aplicar retroativamente essas alterações a situações ocorridas antes de terem sido feitas as alterações. Receio ter de recordar que esse princípio crucial da “rule of law” estava já contido na Magna Carta de 1215.
É surpreendente que o actual Presidente da Comissão Europeia ignore estes princípios elementares. Mas é ainda mais surpreendente que eles pareçam ser ignorados pela cultura política das instituições de Bruxelas — que parece terem achado normal o comportamento do sr. Juncker.
Após alguma reflexão, no entanto, talvez não seja tão surpreendente. Estes comportamentos parecem ilustrar uma cultura política continental — para não dizer jacobina e napoleónica — em que a ideia de governo limitado pela lei não é central. Nesta cultura, como tenho argumentado mais detalhadamente noutros lugares, também a distinção entre regras gerais e propósitos particulares não é central. Se os propósitos forem julgados “bons”, será considerado normal que regras gerais sejam ignoradas para que o poder coercivo do Estado (que no continente se escreve com maiúscula) possa alcançar os objetivos “bons”.
Não é aqui o lugar para recordar o profundo alcance da distinção entre regras gerais e propósitos particulares — e o fundamento que ela fornece ao ideal de governo limitado pela lei. Mas vejo-me forçado a repetir aqui que essa distinção está há 2500 anos no cerne da distinção entre a civilização europeia e ocidental… e as outras.

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