Sabem tudo sobre preços e nada sobre valores

Paulo Ferreira
Observador 20160807

Achar que o sentido de Estado se resgata com umas centenas de euros e que com o reembolso o caso fica encerrado é daquelas condutas e declarações que definem um padrão ético, ou a absoluta falta dele.
No dia 9 de Março de 2013 Tim Davie foi assitir a um jogo de futebol entre o Manchester City e o Barnsley. Foi a convite do clube da casa. Não sei, nem interessa para o caso, se foi um bom jogo ou qual foi o resultado. Mas sei que Tim foi acompanhado do seu filho.
Cerca de um ano depois, no dia 10 de Fevereiro de 2014, o seu colega James Purnell recebeu uma caixa com oito garrafas de “boudeaux”, como agradecimento pela palestra que tinha feito no jantar “Media and Entertainment” organizado por uma sociedade de advogados, a Nick Elverston, Herbert Smith Freehills LLP. Purnell foi o convidado de honra desse jantar, tendo participado sem cobrar qualquer “fee”. O vinho, esse, doou-o para um leilão de caridade.
Tim Davie e James Purnell são dois ilustres desconhecidos nossos. São directores da BBC — da BBC Worldwide e de Estratégia e Ensino, respectivamente — e para saber a forma como gerem as “condutas socialmente adequadas e conformes aos usos e costumes” não é preciso fazer nenhum trabalho de investigação ou ficar à espera que uma fonte provoque uma fuga de informação a um jornalista. Está tudo no site da própria BBC, onde ficamos a saber todos os convites e presentes aceites e despesas em trabalho pagas pela empresa (viagens, refeições, hotéis, etc.).
O mesmo se passa com o governo britânico, que divulga regularmente a mesma informação para os membros dos gabinetes (este, por exemplo, é o da Saúde).
Esta é a abordagem mais restritiva: tudo é publicamente declarado, do convite para um jantar-debate ao presente de mera cortesia. Outros países têm códigos de conduta e práticas semelhantes, como a Dinamarca. E nos Estados Unidos até é possível fazer o ranking dos presentes que o Presidente recebe porque tudo está em bases de dados públicas e facilmente tratadas informaticamente.
É, antes de mais nada, uma questão de respeito pelos cidadãos e contribuintes.
Como se percebe pelo caso das viagens ao Europeu de futebol, em Portugal não só estamos a anos-luz destas práticas como parece que a democracia, a transparência e o escrutínio dos agentes públicos são práticas inventadas ontem mesmo, tal é a estranheza com que lidamos com elas.
A questão é essencialmente cultural e parte da forma como os políticos e governantes assumem o carácter de serviço público das suas funções e obrigações associadas mas também da forma como a sociedade civil aceita ser tratada.
A proximidade, que rapidamente se transforma em promiscuidade, entre o poder político e os poderes económico e mediático fazem o resto, como Miguel Poiares Maduro já reflectiu aqui.
Em matéria de transparência, em Portugal sobre tudo se legisla mas pouco ou nada funciona. As leis não são feitas para produzirem os efeitos que delas se esperam — dar informação aos cidadãos que permita o escrutínio e dissuadir práticas incorrectas — mas sim como método bacoco de fuga para a frente. Foi isso que acabámos de ver, desta vez através de Augusto Santos Silva. Quando há uma polémica, a primeira coisa que os políticos fazem é prometer mais uma lei. Até conseguimos imaginar as trocas de telefonemas dos últimos dias entre o Palácio das Necessidades, o Algarve e o Terreiro do Paço: “Podíamos anunciar já que vamos avançar com um código de conduta. Os parvos dos jornalistas seguem essa lebre e a opinião pública vai atrás. Em poucos dias já ninguém fala do caso concreto”. A parcela de diálogo é ficcionada mas, sabendo como os truques de comunicação têm ascendente sobre a essência das questões, é tudo menos inverosímil.
Já muito se disse e escreveu sobre o erro de Fernando Rocha Andrade em ter aceite o convite da Galp para ir ver a bola. Não se encontra, aliás, ninguém que defenda o acto, sobretudo quando é público que a empresa tem um conflito jurídico com o Estado sobre o pagamento de uma contribuição extraordinária de 100 milhões de euros decidida pelo anterior governo.
Mas só nas cabeças iluminadas dos supostos “solucionadores de problemas” do Governo é que a saída para a enrascada estava no dinheiro: passa-se um cheque à empresa para pagar as despesas e fica o assunto resolvido. Esta gente sabe tudo sobre preços e nada sobre valores. E isso é ainda mais assustador do que o pecado original que, acredito, se deveu sobretudo a imprudência e à naturalidade com que se baixam as guardas no convívio entre governantes e interesses privados para além das boas regras de relacionamento social.
Achar que o sentido de Estado e a ética se resgatam com umas centenas de euros e que com o reembolso “o caso fica encerrado”, como pretendeu Augusto Santos Silva, é daquelas condutas e declarações que definem um padrão ético. No caso, a absoluta falta dele.
É daquelas coisas que nos obrigam a sentar os adolescentes lá de casa para lhes reforçar que não, que gente de bem não se comporta desta maneira.
Da mesma forma, gente de bem não mente nas explicações que dá no Parlamento para justificar as faltas para ir ao futebol. Se mente infantilmente aí, pode mentir noutra ocasião para tirar benefício de uma qualquer situação. Mas foi isso que fizeram Luís Montenegro — chefe da bancada do PSD — e os seus colegas Luís Campos Ferreira e Hugo Soares. Os dois primeiros invocaram “trabalho político” mas, longas horas depois de ter sido noticiado que também tinham viajado a convite, no caso de Joaquim Oliveira, vieram dizer que tinham pagos as despesas do seu bolso. Será? E se foram em trabalho político porque suportaram as despesas? É suposto serem pagos pelo Parlamento para fazerem o seu trabalho. Mais deprimente foi a justificação com “motivo de força maior” dada por Hugo Soares. A ligeireza é demasiada e muito provavelmente não saberá o alcance concreto da expressão. Como há-de a dignidade parlamentar resistir?
Mais do que triste, tudo isto é degradante. E, no entanto, quem quiser fazer as coisas bem feitas não precisa de códigos de ética ou leis sinuosas que, muitas vezes, estão cheios de alçapões e atalhos. Basta perguntar-se: teria algum problema ou desconforto em divulgar já amanhã o convite que aceitei ou o presente que recebi? Se a resposta não for um claro “não” o melhor é não aceitar. Para além das matérias relacionadas com o segredo de Estado, é um bom princípio não fazer nada que não seja susceptível de ser conhecido publicamente. Sobretudo na vida pública.

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