Guerras de sombras

Inês Teotónio Pereira
DN 20160820

O meu telemóvel partiu-se. Foi o que bastou para me irritar, para me queixar da vida, para praguejar. Até que por acaso esbarrei com um vídeo. O vídeo de um menino da idade dos meus coberto de sangue a entrar numa ambulância depois de mais um ataque aéreo na Síria. O vídeo estava a ser emitido pela CNN e a ser difundido pelas redes sociais. Durante os longos dois minutos que dura a gravação o menino não solta um som. Não chora e não grita, limitando-se a limpar o sangue que lhe escorre na cara ao banco da ambulância. Está impávido e sossegadinho na ambulância. Não se mexe. Tem um olhar parado que nem sequer transparece medo, apenas apatia. Logo a seguir a este embate com o mundo da guerra, entrei na FNAC para resolver o meu problema vital com o telemóvel e estava um senhor - não um rapaz - a jogar um videojogo num ecrã gigante. O ecrã estremecia a cada rajada de metralhadora. O sangue parecia pingar para fora e o cenário de guerra, onde tudo se passava, era igual ao do vídeo do menino da idade dos meus que anteontem - no dia em que o meu telemóvel se estragou e eu achei que o mundo ia acabar - ficou coberto de sangue depois de mais um ataque aéreo. Fiquei hipnotizada a ver os pontos que o senhor ia acumulando e a destreza com que conseguia passar de nível destruindo tudo o que se mexia. Nada de mal, é apenas um jogo. E eu até faço parte da minoria que não atribui aos videojogos a responsabilidade pelas barbaridades que se passam no mundo mas sim às pessoas que as cometem, que escolhem o mal quando podiam não escolher coisa alguma. Não foram as questões sociológicas da origem da violência que me prenderam àquele jogo mas sim pensar como estamos todos tão longe do cheiro da guerra e do seu horror que achamos normal que um bom jogo é aquele que transporta para o meio da FNAC um cenário igual àquele onde Omran foi bombardeado. Que quanto maior o terror do realismo melhor é a ficção. Que estranho é ser tão normal brincar com coisas tão sérias e depois chorar as verdadeiras vítimas quando a realidade nos entra pelo FB.

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