Explicando o que deveria ser inexplicável: um problema de cultura política

Miguel Poiares Maduro
Observador 6/8/2016

O caso Galp resulta de uma cultura política de excessiva proximidade entre o poder político e o poder económico que favorece os conflitos de interesse e premeia menos o mérito e mais quem se conhece.

Há um risco sério do caso envolvendo ofertas da Galp a membros do Governo se esgotar no cansaço mediático que os próximos dias vão trazer. Mas há um risco maior: o de em vez de constituir uma oportunidade para discutir e tirar consequências de um problema mais profundo de cultura política que temos, esgotarmos nele todos os problemas da nossa cultura política.
Uma cultura política, a nossa, que explica, em boa parte, a dificuldade que a nossa democracia tem tido em oferecer respostas satisfatórias e sustentáveis aos nossos desafios económicos e sociais. Uma cultura política que parecíamos ter começado a mudar mas temo possa estar a reaparecer.
Comecemos pelo “caso” para chegar depois à cultura política que o explica.
O gabinete do PM diz que o assunto está encerrado mas o Governo ainda não tem poder de encerrar assuntos… Na verdade, o Governo veio decretar o perdão sem sequer existir pedido de desculpas.
Ao determinar o reembolso à Galp por parte dos secretários de estado, após a divulgação pública dos factos, o Governo reconhece que a oferta não devia ter sido aceite. O que está em causa é a decisão inicial de aceitar a oferta por parte dos secretários de estado. O reembolso é feito à Galp mas a responsabilidade é devida perante o Estado e os portugueses. A decisão de aceitar a oferta permanece e é sobre essa que o Governo deve uma explicação ao país. Digo o Governo porque ao legitimar, como o fez, a aceitação dessa oferta irregular é o Governo, e já não apenas os secretários de Estado, que nos devem uma explicação.
A proposta de um código de conduta é mais um exemplo daquilo que começa a ser uma prática reiterada deste Governo: procurar resolver um problema de fundo com uma ação de comunicação…
Ao contrário do que outros têm dito entendo que um código de conduta pode não ser inútil para algumas situações. Pode clarificar alguns casos de fronteira e dar maior segurança e tranquilidade aos membros do Governo (incluindo permitindo-lhes proteger-se de certas pressões sociais ao poderem invocar expressamente esse código). Mas esse código é seguramente inútil para este caso. E não por apenas dizer respeito ao futuro. É inútil por ser para lá de redundante nesta circunstância… Este não é um caso dúbio. Uma oferta deste tipo nunca pode ser considerada parte dos usos e costumes (pelo menos dos bons usos e costumes, os únicos merecedores de proteção…). Se e quando aprovado, o código, se corresponder às práticas internacionais, irá tornar ainda mais claro quão longe do aceitável era esta oferta.
Sendo estes factos claros para mim, interrogo-me sobre qual a razão que pode levar um secretário de estado (que várias pessoas me indicam ser sério e inteligente) a incorrer em tamanho erro de avaliação ética. A explicação encontro-a numa certa cultura política, no contexto da qual essa decisão individual tem lugar. Essa cultura não desculpa essa decisão individual. Explica-a. Mas também torna ainda mais importante assumir a responsabilidade inerente a essa decisão errada de forma a contribuir para mudar essa cultura política. Infelizmente, aquilo que já estamos a assistir é a essa cultura política ser usada e mobilizada para desvalorizar a responsabilidade em causa.
É por isso que é tão importante não esgotar este debate neste caso mas sim usá-lo para discutir com mais profundidade alguns dos problemas da nossa cultura política. Este caso é um exemplo paradigmático de um dos principais problemas dessa cultura política: a proximidade entre poder político e económico (e também, por vezes, mediático).
Têm razão aqueles que dizem que não se deve presumir que ofertas deste tipo possam corromper membros do Governo. Mas não é disso que se trata: o risco é a excessiva proximidade que este tipo de comportamentos geram. Entre esta proximidade e a promiscuidade a fronteira é ténue.
É esta cultura política de excessiva proximidade entre o poder político e o poder económico que favorece os conflitos de interesse e premeia menos o mérito e mais quem se conhece. É esta cultura que está na base de muitos problemas e casos que hoje começam a ser conhecidos. E não me refiro apenas a casos que podem ser de corrupção. O problema é mais amplo porque mesmo quando o Governo pretende capturar o poder económico para prosseguir certas finalidades públicas acaba antes por ser frequentemente capturado por este… Os custos da corrupção para o país são enormes mas mais ocasionais. Os custos totais desta captura e proximidade excessiva entre poder político e económico, mesmo sem corrupção, são mais difusos e permanentes.
E é também esta cultura política e as suas consequências que minam a confiança da sociedade na neutralidade e imparcialidade do Estado. E, com isso, toda uma série de comportamentos distorcidos e evasivos do bem comum são justificados e promovidos.
Fiz parte de um Governo que, seguramente com erros e omissões, foi talvez aquele que mais procurou combater essa cultura política. É com tristeza e profunda frustração que vejo sinais inquietantes do regresso e reforço dessa cultura política. Não estou a referir-me apenas, nem principalmente, a este caso das ofertas da GALP. Refiro-me a outros casos que, tendo talvez até importância superior, não são sequer concebidos como graves.
Um das dificuldades decorrentes dos nossos maiores problemas resultarem da nossa cultura política é que muito do que contribui para esta não é entendido como tal. Talvez saibamos apontar os problemas que decorrem da nossa cultura política mas é bem mais difícil reconhecer o que realmente contribui para essa cultura política. E, no entanto, é isso que é realmente fundamental mudar.
Vou dar dois exemplos desta dificuldade assentes em práticas do atual Governo que agravam esta cultura política quer na excessiva proximidade entre poder político e económico quer entre poder político e jornalismo.
O primeiro diz respeito à intervenção que o PM António Costa terá tido junto da Dra. Isabel Santos intermediando entre diferentes interesses acionistas no BPI e, ao mesmo tempo, procurando promover uma certa solução privada para o BCP. O Dr. Pedro Passos Coelho criticou aquilo que apelidou como uma possível intervenção do Governo em negócios privados no sector financeiro e foi, por sua vez, fortemente criticado por muitos por, de acordo com essa opinião dominante, esquecer que o Governo tem competência e responsabilidade para intervir no sector financeiro. O problema, no entanto, é a forma como essa intervenção deve ter lugar. A forma de intervenção escolhida pelo atual pelo PM não é transparente e promove precisamente a excessiva proximidade entre poder político e económico que tão grandes custos nos trouxe (e que, infelizmente, ainda teremos que continuar pagar).
Não excluo que um Governo possa ser movido por uma boa intenção ao chamar uns empresários e lhes pedir que comprem a empresa A ou B. Mas, mesmo que se considere que em certos casos podia ser do interesse público imediato que fosse o Governo a determinar a que mãos privadas deviam ir parar certas empresas (o que é, frequentemente, muito duvidoso) não podemos esquecer o preço que vamos todos pagar a longo prazo: é que esses empresários a quem o Governo pede, um dia, um favor vão sentir-se à vontade para ir pedir favores ao Governo na semana seguinte…
O segundo caso ficou “remetido”, de forma discreta, ao rodapé de um editorial de jornal. No inicio da semana, o JN titulava que um juiz responsável por julgar alguns dos processos envolvendo os contratos de associação de colégios privados teria filhas a frequentar esses mesmos colégios privados. A notícia revelou-se falsa. O JN responsavelmente assumiu o erro mas revelou também, parcialmente, a fonte da notícia. Em principio os jornais não estão obrigados (nem devem) revelar as suas fontes. Mas há uma exceção: quando a fonte engana o jornalista. Neste caso, o jornal não apenas pode como deve divulgar a fonte que procurou enganar jornal e opinião publica. O que devia ter causado escândalo, mas aparentemente não causa, era a fonte dessa informação falsa sobre o juiz de acordo com o JN: fonte ligada ao Governo.
No nosso país o uso e abuso das fontes (e pelas fontes) do jornalismo já atingiu um tal nível que ninguém se escandaliza com a informação de que o Governo terá fornecido (de forma anónima) informação falsa a um jornal sobre um juiz.
Sejamos claros: a confirmar-se o que resulta do desmentido do jornal estamos perante um facto mais grave do que as ofertas feitas pela Galp a membros do Governo. Mas a nossa cultura política já está tão dependente destes usos e abusos das fontes que tudo parece permitido. Não fosse a indignação cívica do Conselheiro de Estado Lobo Xavier e a mentira de outro Conselheiro de Estado, enquanto fonte “bem informada” de um jornal (que devia aliás ter feito o que o JN fez), teria feito o seu caminho sobre a recente intervenção do anterior PR no último Conselho de Estado.
O sigilo das fontes é uma prática fundamental no jornalismo em certos casos mas deve ser a exceção e não a norma nas noticias Em Portugal a manipulação do sigilo das fontes é o que, frequentemente, passa por fazer boa comunicação política… Ainda recentemente um dos mais respeitados jornalistas portugueses (Henrique Monteiro) alertava para o enorme abuso do recurso a fontes não identificadas e não verificáveis a propósito do que se escreveu sobre sanções e como isso afectava a credibilidade do que líamos a tal respeito. Ironicamente, nesse mesmo dia e jornal, um outro artigo, com base “nessas” fontes, descrevia a epopeia do nosso PM na oposição às sanções. Entre outros factos relatava-se como no último Conselho Europeu o PM teria no bolso do casaco um papel com os diferentes chefes de governo com quem tinha de falar e como, após conversar com cada um deles, ia anotando algo ao lado desse nome. Que fonte independente terá relatado tal coisa e que outras fontes terá depois o jornal conseguido obter para comprovar tal informação deixo ao leitor imaginar.
A verdade, no entanto, é que este artigo não é inusual e é injusto penalizar esses jornalistas por uma prática que se generalizou e à qual eles se têm de adequar se querem sobreviver e progredir nas suas carreiras.
O que alimenta esta prática, no entanto, é de novo uma cultura política assente numa excessiva proximidade, desta vez entre política e jornalismo. Muitos jornalistas beneficiam dela para terem acesso a informação privilegiada. Muitos políticos beneficiam dela para passarem a informação que querem.
O problema é que facilmente esta relação se transforma numa transação geradora de enormes riscos e manipulações políticas e jornalísticas. Não defendo uma segregação entre políticos e jornalistas (que aliás não seria possível) mas é fundamental “regular” esta proximidade e estabelecer com clareza quer as regras e critérios a que ela está efetivamente sujeita (por exemplo, uma verdadeira confirmação das fontes) quer as consequências da sua violação (por ex. a divulgação da fonte que mentiu). Essa regulação não pode, naturalmente, ser feita pelo sistema político. Competiria talvez aos diretores de informação (que se organizaram – e bem – para se opor ao hipotético regime de regulação da cobertura das campanhas eleitorais) tomar a iniciativa.
Aquilo que mais dificulta a mudança de cultura política é… a própria cultura política.
Por isso é fundamental procurar evitar as armadilhas dessa cultura política. Uma delas é a generalização cega (jornalistas fazem-na sobre políticos e políticos fazem-na sobre jornalistas). São todos iguais e é tudo a mesma coisa. Não são e não é. Ainda ontem ficámos a saber que outro secretário de estado não aceitou o convite (fez o seu dever mas é, por vezes, importante salientar aqueles que cumprem a sua obrigação ética). Também ouvimos a habitual mistura de situações envolvendo os membros do Governo com situações envolvendo deputados (que, na sua maioria pelo menos, parecem não se confirmar).
Sejamos claros: se deputados tivessem aceite convites semelhantes também era criticável mas o grau de censura era diferente. Os deputados podem não estar em exclusividade de funções (podendo até – de acordo com o nosso regime atual – trabalhar para empresas), não têm funções executivas e muito menos atividade direta sobre a empresa em causa. Com isto não pretendo excluir as responsabilidades que também poderiam recair sobre os deputados mas apenas salientar que essas responsabilidades seriam diferentes. Para termos uma cultura de responsabilidade eficaz é fundamental diferenciar entre diferentes graus de responsabilidade. Uma das razões porque, frequentemente, acabamos por não ser consequentes é que ao confundirmos os diferentes graus de responsabilidade acabamos ou por condenar ou absolver todos.
Esta é, aliás, um clássico da nossa cultura política. Falar em abstracto de responsabilização e ética e, em concreto, confundir graus, casos e consequências de forma a que nunca se tirem verdadeiramente consequências. Todos são culpados de tudo, ninguém é verdadeiramente culpado de nada.
Não vai ser fácil mudar esta cultura política. Mas acho que tínhamos começado a mudar. Impedir mais esta reversão é que é mesmo responsabilidade de todos.

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