O desporto faz mal à saúde

João César das Neves
DN 20160818
O drama de Michael Phelps inspira multidões, transformando-se numa das histórias marcantes dos Jogos Olímpicos Rio 2016. Mas nunca se diz que essa história representa uma traição ao espírito olímpico e uma terrível condenação do materialismo obsessivo do nosso tempo.
Phelps é o maior nadador e um dos maiores atletas de todos os tempos. Com inúmeros títulos e recordes em seu nome. Em especial, tem lugar de destaque precisamente nos Jogos Olímpicos, tendo participado em cinco (Sydney 2000 - sem medalhas -, Atenas 2004, Pequim 2008, Londres 2012 e Rio 2016). Com 31 anos, é a pessoa mais medalhada de sempre (28), com mais medalhas de ouro (23, mais do dobro do segundo), com mais medalhas em provas individuais (16) e com mais medalhas de ouro em provas individuais (13). É ainda o mais velho campeão olímpico numa prova individual de natação.
Mas aquilo que agora o destaca, e lhe dá o toque humano que cria as histórias inspiradoras, é a recuperação notável que conseguiu depois de um grave episódio de alcoolismo e depressão. Em Setembro de 2014, foi preso por conduzir embriagado e passou mês e meio internado numa clínica de reabilitação. As seis medalhas do Rio são celebradas na imprensa como a prova da sua redenção. Tratar o tema assim, implicitamente assumindo um "viveram felizes para sempre", é enorme ingenuidade. A miséria que Phelps encontrou no meio de tanto sucesso mostra que existe aqui um problema mais profundo.
Se por momentos deixarmos o fascínio que tais proezas nos causam, temos de dizer que um atleta destes só pode ser uma pessoa altamente desequilibrada. Os próprios resultados chegam para demonstrar a anormalidade. Só um monstro, no sentido próprio do termo, conseguiria atingir tais níveis sobre-humanos. Isso traduz-se também na vida concreta dessas pessoas. Passar vários anos, precisamente os mais formativos da personalidade, focado numa única tarefa repetitiva, neste caso esbracejar e espernear dentro de água, tem de ter consequências traumáticas para toda a vida. Pior ainda: numa idade ainda jovem o atleta vê-se de repente desqualificado e, em geral, incapaz de começar uma nova vida com significado. É ainda muito novo para se reformar, muito velho para aprender outra profissão e incapaz de continuar na sua. Os mais famosos, como Phelps, ainda podem viver da imagem, mas logo o segundo classificado cai no anonimato uns meses depois da medalha. A verdade é que o desporto de alta competição é uma máquina de triturar jovens. Tal como no caso dos top models e afins, trata-se de uma forma de escravatura dourada enquanto dura, em que o escravizador é o próprio escravo, seguido pela mais profunda vacuidade.
O que espanta, portanto, não é o colapso de Michael Phelps. Estranho é que não aconteça mais vezes, que quase não se fale deste problema e que tantos o declarem curado precisamente quando começa o período mais perigoso. Na verdade, o caso é recorrente. Num caso entre miríades, o filme Belarmino (1964), clássico do cinema português, constitui uma reflexão precisamente sobre este fenómeno.
Podemos perguntar como devia ser então? Que outra forma existiria para atingir tais marcas? Mas essas perguntas são resultado da própria distorção. Porque o que é relevante é saber para que servem marcas destas. Na verdade elas são não apenas imorais, pelos efeitos horríveis que têm nas suas vítimas, mas, neste caso particular, abertamente ilegais.
O movimento olímpico, lançado por Pierre de Coubertin em 1896, punha o acento tónico no amadorismo da actividade desportiva. Nos Jogos Olímpicos estavam liminarmente proibidos os atletas profissionais. A razão era precisamente o repúdio de desgraças como a de Phelps. O desporto é um meio excelente para a realização pessoal desde que praticado por desporto. A finalidade da sua prática deve a famosa máxima da Sátira X de Juvenal: "Mente sã em corpo são" (linha 10.356). Quando as marcas, e não o equilíbrio, passam a ser a finalidade, perde-se a moderação e começa a destruição. Como o dinheiro, o desporto é um bom servo mas um mau senhor.
O nosso tempo desprezou este princípio fundamental. A ânsia por espectáculo, fama e dinheiro transformou os Jogos Olímpicos num supercampeonato, onde um verdadeiro amador não tem hipótese. O evento está concebido para pessoas como Phelps, que, mais do que profissionais, são obcecados.
Este é apenas um exemplo do materialismo boçal desta era de extremos, que seca tudo à sua volta. Produzir para produzir; ganhar para ganhar. O fim deixa de ser a pessoa para ser a coisa.

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