Fogo de vista
Helena Matos
Observador 10/8/2016
Pastores, fumadores, madeireiros, agricultores, reaccionários, fogueteiros, celuloses e construtores foram os culpados óbvios dos incêndios. Depois chegou a culpa da falta de meios. É o fogo de vista.
Primeiro eram os pastores. Depois as máquinas dos comboios. Em seguida chegaram os cigarros e os foguetes. Falo de incêndios, claro. Em Portugal falar de fogos florestais é falar de culpas.
Ao longo dos últimos 50 anos, os incêndios tornaram-se uma constante. O que, de tempos a tempos, muda é a identidade do culpado que com invariável certeza acusamos da autoria desta tragédia. No final dos anos 60, início dos anos 70, Góis, Pampilhosa da Serra, Viana do Castelo, Lousã, Serra de Candeeiros, Santa Luzia, Montejunto… começaram a ter presença marcada nas páginas dos jornais. As fotos eram invariavelmente as mesmas: mulheres de olhar angustiado fixavam a vista nas frentes do incêndio enquanto seguravam contra o peito crianças que olhavam as câmaras com um ar de admiração não tanto com as proporções do desastre que as rodeava mas sim com a tumultuosa novidade, jornalistas incluídos, que o fogo trazia.
Nesse tempo a falta de meios para combater os incêndios era uma fragilidade do regime e uma evidência para sempre associada a uma data: em Setembro de 1966, os militares foram chamados a combater o incêndio que lavrava na serra de Sintra. O resultado não podia ser pior: 25 jovens militares morreram cercados pelas chamas. A descrição da descoberta dos seus corpos nos locais onde se tinham procurado refugiar das chamas e do fumo continua a comover 50 anos depois.
Depois veio 1974. O país continuou a arder. Mas agora os fogos nasciam das mãos dos reaccionários. Claro que continuavam a existir os pastores, os cigarros e os foguetes mas no apuro das culpas, as maiores iam agora para os reaccionários que no seu propósito de denegrir a revolução não hesitavam em atear fogos. Em Agosto de 1975, ganhou-se um lema – “O incêndio é a arma da reacção” – e uma certeza: os reaccionários organizavam redes de incendiários. Fotos de engenhos incendiários ilustravam os textos sobre o incêndio enquanto arma da reacção e a sofisticação das tais redes de incendiários. Reaccionários, claro.
Por ironia trágica, foi a norte do Tejo, em terras então tidas como reaccionárias, que tiveram lugar episódios de justiça popular que nunca interessaram os nossos intelectuais e jornalistas porque os seus protagonistas não lembraram de invocar Marx para justificar a sua barbárie: a 1 de Setembro de 1975, duas dezenas de pessoas esperaram na localidade do Cruzeiro a camionete que fazia a ligação entre São Pedro do Sul e Castro Daire. Impediram-na de prosseguir viagem enquanto um dos seus passageiros não se apeasse. Quando isso acontece agridem-no até à morte. Amadeu Lourenço, assim se chamava o passageiro, era acusado de ser o autor dos incêndios que nos últimos dias tinham andado nas terras da Arada e do Candal.
Com o fim do PREC as redes de reaccionários pirómanos desapareceram. Ou melhor deram lugar à fulanização noutros culpados. Igualmente óbvios: os madeireiros. Portugal ardia agora por causa dos madeireiros que comprariam muito mais em conta a madeira ardida. Sem dúvida que os pastores, os cigarros, os foguetes, a que juntavam agora também as queimadas feitas pelos agricultores e as fogueiras dos piqueniques, continuavam a ter o seu papel nesse inferno cíclico que assolava o país mas os culpados maiores eram claramente os madeireiros. Os fotógrafos assestavam as câmaras em engenhos incendiários e os jornalistas tomavam conta dos testemunhos de gente que, antes dos incêndios, vira carros misteriosos a passar ou uma avionete que largara qualquer coisa.
É difícil saber o que pensavam os madeireiros do assunto porque ou eles não quiseram falar ou ninguém os interrogou mas não será muito imaginativo presumir que os madeireiros suspiraram de alívio quando as celuloses os substituíram no papel de culpados dos incêndios. Rapidamente, tornou-se inquestionável que a quem precisasse de terrenos para eucaliptizar o fogo surgiria não como arma da reacção mas sim como ferramenta da eucaliptização. E assim, tal como no passado, a lista dos culpados dos nossos incêndios acrescentou-se. Lá continuavam os pastores, os cigarros, os foguetes, as queimadas feitas pelos agricultores, as fogueiras dos piqueniques e os madeireiros mas o topo da culpa ia agora as celuloses que de certo modo absorviam também o imaginário dos reaccionários, dada a ligação inquestionável destes últimos ao grande capital que tanto apoiava a contra-revolução como a eucaliptização.
Com a legislação a permitir o plantio de eucaliptos em todos o tipo de terrenos, mesmo os agrícolas de melhor qualidade, já não se via porque precisariam de incendiar serranias inacessíveis, os interessados em plantar eucaliptos e assim a lista dos culpados mais que óbvios viu chegar outro grupo ao topo: eram os promotores imobiliários. Portugal passou a arder para nos lugares ardidos se construírem novas urbanizações. E mais uma vez os pastores com que a nossa lista começou ali pelos anos 60 ganharam a companhia de novos culpados óbvios. Que esses culpados se tenham tornados cada vez mais óbvios e cada vez mais poderosos dá bem conta da insuficiência deste tipo de argumentário. Mas fosse como fosse as grandes empresas de construção interessadas em urbanizar os terrenos que o fogo desembaraçara do mato e dos limites legais foram fazer companhia às celuloses, aos madeireiros, aos agricultores que faziam queimadas, aos frequentadores de piqueniques, aos fumadores, aos reaccionários, aos fogueteiros e aos pastores.
Valha a verdade que não era apenas a lista dos culpados que crescia mas também a lista das faltas de meios e das responsabilidades políticas. Para lá dos culpados, sempre óbvios, há que ter em conta que os meios nunca são suficientes. E assim o país, com a mesma prontidão com que, ao longo de décadas, identificou culpados óbvios que logo trocava por outros ainda mais culpados e mais óbvios descobriu que a solução para os incêndios passava por meios e mais meios. Politicamente vistosos e corporativamente interessantíssimos, os meios tornaram-se a panaceia para os fogos que tinham começado por existir por causa dos pastores, dos cigarros, dos foguetes, das queimadas, das fogueiras, dos reaccionários, dos madeireiros, das celuloses, dos promotores imobiliários… e que, esgotados os culpados, passaram a acontecer simplesmente “por causa da falta de meios”. Sucessivos governos foram sendo acusados de serem os culpados pelas labaredas que atravessavam o país “por causa da falta de meios”.
Agora que não temos mais culpados para culpar e que a questão já não se resume a uma discussão sobre os mais e os menos meios, está mais que chegado o tempo de nos deixarmos do fogo de vista dos culpados materialmente obscuros ou simplesmente tarados (sim, existem mas não explicam a dimensão catastrófica dos incêndios) dos meios (podem ser mais e melhores mas não é isso que os torna mais eficazes) o país mudou. Querer combater incêndios como se os hábitos e a distribuição da população pelo território não tivessem mudado desde os anos 50 do século passado, quando a maior parte da população vivia no campo e calcorreava as serras em busca de lenha e alimento para o gado, é tão ineficaz e grotesco quanto aquelas pessoas que, em Setembro de 1975, acreditaram que matando um qualquer desgraçado punham fim ao drama dos incêndios que lhes roubavam o sono, os bens e a paz.
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