Marcelo, o bom samaritano
JOÃO MIGUEL TAVARES Público 13/08/2016
Numa época em que ser cristão parece tão fora de moda, vale a pena recordar o que isso significa. Neste caso, basta apontar para Marcelo na Madeira e dizer: é aquilo.
Quando soube que Marcelo decidira partir para a Madeira a grande velocidade, ainda os incêndios lavravam no centro do Funchal, pareceu-me uma péssima ideia. Marcelo não faz parte do grupo de intervenção da GNR e não consta que tenha treino de sapador. Numa ocasião dessas, o mais provável é ir só atrapalhar, e a prudência aconselharia a que aguardasse 24 ou 48 horas. O presidente do Governo Regional tem mais que fazer do que dedicar-se aos salamaleques e ao tour de cortesia, como tem o presidente da Câmara do Funchal, o chefe dos bombeiros ou os homens da protecção civil. Se o Presidente da República chega é preciso estar lá, cumprimentar, levar aos sítios, arranjar um helicóptero que voe de Porto Santo até à Madeira, por causa dos ventos. Um Presidente exige sempre protocolo, logística e muita atenção. Em vez de ajudar, Marcelo corria o risco de ir exigir mais energia a quem só precisava de descanso e de se concentrar no rescaldo do incêndio.
Mas depois vi as reportagens televisivas com Marcelo na ilha e mudei de opinião. A sua presença exigiu, de facto, logística, tempo e salamaleques, mas ele é de tal modo extraordinário no contacto pessoal que eu fiquei orgulhoso como português de o ter ali, e de o ver consolar daquela maneira quem tinha perdido tudo, menos a vida. Ainda bem que ele foi. É para isso que serve um Presidente da República. As televisões estavam lá, e ele sabia que estavam, mas nada daquilo era encenado. Havia a justa correspondência entre os sentimentos interiores e a sua exteriorização – Marcelo estava a ser realmente genuíno na empatia que demonstrava ter para com aquelas pessoas, na forma como as abraça e beijava, no modo como encontrava as palavras certas para falar com elas. É um dom extraordinário, ao qual sou muitíssimo sensível. Claro que Marcelo já demonstrara isso na sua campanha eleitoral, quando andava por feiras e mercados – mas aí os seus talentos sociais estavam ao serviço do voto e da popularidade. Ver esse talento colocado ao serviço da mais nobre das causas – o consolo de quem tanto perdeu – é uma maravilha, e uma maravilha que eu gostaria de deixar aqui sublinhada, porque todas as tragédias trazem consigo exemplos de dedicação e amor ao próximo.
Já critiquei muitas vezes Marcelo e certamente voltarei a criticar. Embora tenha votado nele, é com grande frequência imprudente, impulsivo, infantil. Mas ao vê-lo na Madeira, lembrei-me da parte final de um longo perfil que Maria João Avillez escreveu sobre ele no Observador, antes das eleições presidenciais. Ela é possivelmente a jornalista que melhor o conhece, e esse texto, chamado “Afinal, quem é este homem?”, pareceu-me justíssimo, mas longe de simpático. Contudo, havia uma parte final dedicada ao Marcelo cristão, onde ela falava do “ser humano generoso, sempre pronto a entrar em acção”, e da seriedade ímpar da sua relação com Deus, que justificou assim: “Talvez porque ela lhe ofereça um sentido para as coisas; talvez porque necessite de balizar a inconstância da sua relação com a vida com a constância da sua relação com o transcendente. Talvez porque ela seja o seu pulmão mais limpo.” Foi isso que pudemos ver no Funchal – o pulmão mais limpo de Marcelo, oxigenado por essa extraordinária empatia que se encontra nos Evangelhos como em mais lado nenhum. Numa época em que ser cristão parece tão fora de moda, vale a pena recordar o que isso significa. Neste caso, basta apontar para Marcelo na Madeira e dizer: é aquilo.
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