O Outono socialista
António Barreto
DN 20160814
A direita diz que não, a esquerda diz que sim. Mas esquerda e direita ainda existem e são diferentes. Quando ambas são democráticas, o que pode acontecer, não são totalmente contraditórias e exclusivas. Distinguem-se, entre outras, pela eficiência (do lado da direita) e pela igualdade (do lado da esquerda). Uma é mais individualista, a direita, outra mais colectivista, a esquerda. Uma, a direita, presta mais atenção à propriedade, outra, a esquerda, prefere a posse comum. Uma olha com especial interesse para a empresa, a direita, outra para o Estado, a esquerda.
Mas também têm valores comuns, como a liberdade. Ou então a democracia, a política externa e muitos aspectos do Estado providência, hoje Estado social europeu. Quem negar esta comunidade de valores e de história pretende regressar à política da luta de classes e da guerra civil e não parece ter muito empenho na liberdade. Quando se regressa à retórica da esquerda contra a direita, da classe contra classe, há razões para recear o pior. Em particular, há motivos para pensar que a esquerda democrática deixa de considerar a liberdade como a prioridade da sua política.
Ora, a política portuguesa mudou desde há quase um ano e tem agora uma nova semântica. A oposição entre esquerda e direita voltou à primeira página. No poder e a tentar construir uma solução parlamentar inédita, a esquerda reintroduziu uma liturgia repetitiva que agora serve de pensamento. O que é de esquerda é bom. O que é de direita é mau. E não há mais espaço para argumentação. O Partido Socialista tem-se deixado contaminar por este palavreado.
No Parlamento, é frequente ouvir esse supremo insulto que consiste em designar "de direita" uma opinião ou um projecto. Nos comícios de fim--de-semana, preparados para encher os tempos mortos da televisão, socialistas, bloquistas e comunistas surgem com assiduidade e mostram a delicadeza do seu raciocínio: é de direita, é mau. É de esquerda, é cá dos nossos, é bom.
É grave o facto de o Partido Socialista ter vindo a adoptar clichés da extrema-esquerda, com os quais se entretém a substituir o pensamento. Em particular, tudo o que respeita à liberdade e à igualdade. O PS prefere a igualdade e o Estado. Se o PS envereda por este caminho suicida, não só se prepara para se afastar da área do poder por muitos anos, como está a fazer que Portugal fique privado de soluções de governo que tenham inspiração no universo da esquerda democrática. O melhor da esquerda consiste em ganhar o centro e convencer parte da direita às suas ideias e aos seus programas. O pior da esquerda consiste em transformar-se em porta--voz do jacobinismo e da longa tradição antidemocrática de uma parte dessa esquerda.
O Partido Socialista de António Costa está a contrariar relevantes tradições da esquerda democrática, nomeadamente a "equação" liberdade versus igualdade. Há várias décadas que o PS entendeu que a liberdade era o programa prioritário, a causa primeira e a inspiração principal. O que distinguiu o PS dos outros grupos de esquerda e de extrema-esquerda, designadamente o Partido Comunista, era, entre outras, essa questão. Para os esquerdistas mais robustos, a prioridade é a igualdade e a liberdade deve--se-lhe subordinar. Para os socialistas, a liberdade, como valor e objectivo, ou como instrumento, impõe-se. Esta diferença foi actualmente posta em causa. Para obterem o apoio parlamentar de que necessitam, assim como a complacência nas ruas ou a cumplicidade nas instituições e nas empresas, o PS e o governo dão todos os dias sinais de que a igualdade é o seu combate primordial. Nenhuma revolução vale a liberdade.
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