CRÓNICA DA TERRA QUEIMADA
Henrique Pereira dos SantosCrónicas, Wilder, 17.08.2016
O que fica depois de um incêndio voraz? De que cor é a terra? E de que espessura? Que animais restam? Ou não restam nenhuns? Quando o fogo se extinguiu, Henrique Pereira dos Santos, da direcção da Montis – associação que gere terrenos para a biodiversidade – foi à serra da Freita. Isto foi o que viu.
Eu sei que falar de terra queimada não é, habitualmente, falar das rapinas que via a caçar, mas eu não fui lá à procura de desolação, disso já eu sabia e não falta quem fale disso.
Fui só ver o que via e reparei nas rapinas a caçar.
Quando dei o primeiro passo na terra preta, saltou um gafanhoto. Disso eu estava à espera, eu sabia dos milhares de insectos e outros invertebrados e da zoeira que vão fazer daqui a algum tempo, e de como há grupos que tiram rapidamente partido das alterações do meio.
Fui raspar a terra preta. Lá estavam os três ou quatro milímetros de carvão, por cima do solo, os tais que parcialmente vão pintar as ribeiras de preto, muito antes de qualquer solo ser arrastado pelas chuvas, criando a ideia de que a erosão após fogo é necessariamente grande, sobretudo se as primeiras chuvas forem fortes. E reparei como me parecia falsa a ideia de que o solo fica desprotegido, sem raízes porque está tudo morto – raízes vivas era o não faltava por baixo do carvão, no solo, à espera de beneficiarem da disponibilidade de nutrientes que o fogo proporciona.
Sim, havia grandes áreas totalmente pretas, mas havia áreas muito maiores em que não era bem assim, com variações, pequenos retalhos, num mosaico invisível aos olhos de quem procura a desolação, mas bem evidentes aos olhos de quem pensa no que vem depois do fogo.
Quase subitamente, um grande retalho não ardido. Perguntei aos pastores e disseram-me que tinham pedido aos bombeiros para lhes salvar aquele bocado: eram os pastos de Verão do rebanho e sem isso não tinham que dar de comer ao gado. Perguntei-lhes se em todo o lado os bombeiros eram capazes de parar o fogo onde queriam, olharam para mim, espantados com a estupidez da pergunta, e responderam-me que claro que não, mas ali havia menos monte, o gado pastava por ali no Verão, não era mato cerrado como acolá além, que agora não está lá nadinha, nadinha, tudo preto até para trás daquele cabeço.
Bem dizia a velhinha que a filha insistia com ela para que largasse as ovelhas, mas quê, a gente tem que se entreter, não é, vou fazendo uns miminhos enquanto posso para comer do que quero e os animais, que quer, a gente habitua-se. Mas agora disse-lhe, estás a ver onde os bombeiros pararam o fogo, é onde andam as minhas ovelhas, e assim pode ser que ela não me volte a dizer para largar as ovelhas, que a gente viu-se aqui perdidos, era um fogo que só visto, só ficaram as casas e as terras de cultivo.
Fui surpreendido por alguns fundos de vales. Estava à espera de ver quase sempre qualquer coisa menos preta, e sim, era verdade que em muitos fundos de vales era o que se via, quando não verde, verde, era pelo menos um castanho a denunciar um fogo menos quente ou uma passagem mais rápida da chama, mas os vales totalmente pretos eram bem mais que os que pensei: o fogo deu-lhes forte e feio.
30 mil hectares é muita, mas mesmo muita área ardida. E sabendo das acácias e das hakeas que tinha visto em floração há meses, é muito, muito preocupante o que vem por esse lado.
Mas o que vi sobre o futuro, turvo como tudo o que se consegue ver do futuro, é mais que suficiente para olhar para aqueles montes e vales que parecem mortos e saber que não, não é assim, é uma alteração profunda do sistema, não foi a primeira, não será a última, e os perdedores naturais de hoje são os que, aos poucos, muito mais depressa do que pensamos, voltarão ao sítio de onde o fogo os mandou embora.
Temporariamente.
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