E se fosse consigo?

Graça Franco
RR 19 ago, 2016

Não foi numa rua do Iraque. Foi mesmo em Ponte de Sor.

Não fora os agressores serem filhos do embaixador do Iraque e talvez a notícia não tivesse saltado da habitual listagem dos crimes do “Correio da Manhã” para os noticiários nacionais e os jornais de referência. A violência inaudita seria exactamente a mesma. Votada a uma indiferença que nos vai roubando o coração. Fossem os dois gémeos iraquianos dois adolescentes de Portalegre e talvez nem tivéssemos tomado conta da ocorrência. E, contudo, passou-se. Isso deveria bastar-nos para parar e pensar.
Pela violência do crime. Sim, mas não só, nem especialmente. O que é feito da humanidade quando jovens são de tal forma dominados pelo ódio que mesmo sob o efeito do álcool são capazes de esmagar a cabeça de um miúdo saltando a pés juntos sobre ela? Numa violência que não deixa dúvidas sobre o objectivo final: matar.
A nacionalidade/impunidade dos agressores desvia-nos da reflexão essencial. Mais importante do que saber a forma como a sociedade vai conseguir punir o crime ou de que forma o “sistema” ou ambiente de “guerra” em que os agressores provavelmente cresceram pode explicar a violência inusitada para eliminar “o outro”, importa perceber como a sociedade de brandos costumes que os recebeu está ou não hoje capturada pela indiferença.
O jornal “Público” traça o relato possível de uma noite onde a par da violência cresce a sociedade paralisada pelo medo. Uma dormência social que só por si justifica o verdadeiro serviço cívico prestado pela SIC através da série “E Se Fosse Consigo?”. Um grilo falante que tenta despertar as audiências do coma espiritual.
Socorro-me da reportagem de Ana Dias Cordeiro e Mariana Oliveira sobre o crime de Ponte de Sor onde se afirma que “pessoas despertaram muito antes da alvorada com gritos que as levaram às varandas e janelas da Avenida da Liberdade, ainda a tempo de verem um dos suspeitos saltar com os dois pés em cima da cabeça do rapaz. Não desceram. Foram ameaçados pelos agressores que estariam embriagados e gritavam que se descessem à rua lhes fariam o mesmo”.
Não desceram. Foram “ameaçadas”. Isto basta para aparentemente legitimar a inacção. E se fosse com eles? E se fôssemos nós em vez deles? Teríamos descido? E se fosse o nosso filho, o miúdo de “olhos azuis e olhar doce” que víamos da “janela ou da varanda” a ser agredido, caído na rua, quase moribundo. Arranjaríamos aí coragem para descer? Mesmo sob ameaça desceríamos a salvar o nosso?
O que é feito da humanidade quando se deixa de tal forma dominar pelo medo que o relato pode prosseguir assim: “Eram quatro horas da manhã. Quando os homens do carro do lixo passaram e ainda viram os agressores antes de fugirem num Mercedes…”.
O miúdo de olhos azuis meio-morto foi apanhado do chão pelos samaritanos do carro do lixo. Não foi numa rua do Iraque. Foi mesmo em Ponte de Sor.

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