Não apaguem a memória
ZITA SEABRA 29.11.16 OBSERVADOR
É sabido que as vítimas dos regimes comunistas não têm nome, não têm monumentos, não têm baladas de homenagem, nem memoriais. Reduzem-se a números e, quando alguém sublinha que um fuzilado no «paredón» não é diferente de um assassinado no Estádio Nacional do Chile de Pinochet, cai um silêncio tal que se torna uma evidência que as vítimas do comunismo o foram por serem contrarrevolucionários e por colocarem em risco uma qualquer revolução comunista, tendo por isso apenas direito a ser apagadas da história com H grande.
No entanto as vítimas do regime cubano têm nome, tem mães e têm filhos. As «Damas de Blanco», mães e esposas dos presos políticos e dos desaparecidos do regime cubano, sofrem tanto, são iguais, nada as diferencia, das mães de branco do Chile de Pinochet. Ou serão diferentes as mães dos fuzilados e desaparecidos no Chile de Pinochet das mães dos fuzilados e desaparecidos de Havana?
As Damas de Blanco foi um movimento fundado por uma corajosa mulher, Laura Pollan, cujo marido era um dos presos após a brutal repressão do regime comunista cubano em 2003. Receberam, entre outros, o prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento do Parlamento Europeu, em 2005.
Os movimentos corajosos das mães cubanas apareceram logo após a revolução, pois a repressão brutal começou de imediato. Calcula-se que no primeiro ano (1959) tenham sido fuzilados cerca de 1.000 cubanos entre antigos apoiantes de Fulgêncio Batista e companheiros de armas, vindos da Sierra, com Fidel e com Che, como sempre aconteceu em todas as revoluções comunistas.
Um deles foi Humberto Sori Martim, antigo companheiro de Fidel e de Che Guevara na Sierra. Condenado à morte, a sua mãe foi pedir a Fidel, que a conhecia bem, que o seu filho não fosse fuzilado. Foi-o no dia seguinte. Só no primeiro ano (1959) foram fuzilados em Escambray mais de mil cubanos.
Será possível assistir ainda ao branqueamento do comunismo cubano e esquecer que Raúl Castro, eterno ministro da Defesa do regime, foi o criador do «paredón», o local onde ao ar livre funcionaram os tribunais populares/militares que condenavam pessoas e as executavam logo ali contra o terrível muro que os cubanos, esses sim, não apagarão da memória?
Che Guevara foi mitificado e transformado em ícone da esquerda nas t-shirts e em posters. No entanto, foi ele que inventou, segundo Regis Debray, em 1960, na península Guanaha, o primeiro campo de trabalho. Logo a seguir à revolução, passaram pelas suas mãos decisões directas de fuzilamentos como o de Jesus Carrera, um dos chefes de guerrilha anti-Batista que foi presente pessoalmente pelo seu companheiro e amigo Che Guevara a um pelotão de fuzilamento e morto. Não foi o único, pois o mesmo aconteceu a muitos dos antigos companheiros que não conseguiram fugir da ilha.
Como em todos os regimes comunistas, a repressão ao longo destes anos não se limitou a impedir a liberdade política ou de expressão de pensamento, mas a própria população foi toda transformada em potenciais denunciantes (os chamados bufos na linguagem da oposição à ditadura salazarista), o que fez de Cuba um país de pessoas com medo. De triste memória são os CDRs, Comités de bairro que apedrejavam as casas e as famílias de dissidentes ou simples opositores.
Fidel e Raúl criaram os tristemente famosos campos de reabilitação UMAP, de trabalhos forçados e tortura onde eram internados os chamados «aberrantes». Aqui, foram internados milhares de «marginais», entre os quais padres, como o arcebispo de Havana D. Jaime Ortega. Nestes tristemente famosos UMAP, foram internados todos os homossexuais denunciados para sua reeducação até acabar com «os maus vícios» que propagavam. Estes presos foram usados ao longo de décadas como mão de obra em trabalhos forçados, para construir cadeias, universidades e numerosas obras públicas. Em Cuba, como na Rússia estalinista, ou na China da Revolução Cultural.
Todos foram ao longo dos anos da longa ditadura comunista apanhados ou denunciados pela polícia política, conhecida em Havana pela Gestapo Vermelha, ou entregues pelos informadores que no ano 2000 eram cerca de 50.000 pessoas. Desde 1959 mais de 100 mil cubanos conheceram os campos, as prisões ou as frentes abertas. Entre 15000 e 17000 pessoas foram fuziladas («Livro Negro do Comunismo», coord. Stephan Courtois, Quetzal).
No fim da guerra de Angola, o comandante dos cubanos que regressaram (estiveram em nome do comunismo internacional ajudando o MPLA, como é sabido), o general Ochoa Sánchez, foi acusado de narcotraficante. Companheiro de Fidel, ele que vinha da Sierra e combatera na «Baía dos Porcos», foi fuzilado com mais outros três oficiais do exército cubano acusado de organizar um complot para afastar El Comandante.
Como em todos os regimes ditatoriais estalinistas a esquerda, ou alguma esquerda, considerou sempre que o comunismo e seus dirigentes não podem nem devem ser responsabilizados pelos crimes cometidos. São crimes diferentes, são vítimas legitimadas pela justeza dos ideais propagados, são desvios da doutrina, são contrarrevolucionários, são para esquecer, resumindo numa palavra: justificáveis. É politicamente incorrecto dizer que as vítimas de Pinochet são iguais às de Fidel Castro.
No entanto, a vaga repressiva de 2003 teve repercussão mundial mesmo fora dos Estados Unidos, onde muitos milhares de cubanos chegaram ao longo dos anos fugidos em barcos ou em jangadas. Não podia ser silenciada e muita gente o fez. Tinha-se até aí a sensação que havia um certo abrandar da repressão após a queda do comunismo na URSS e que o regime ia proceder a uma lenta transição. Mas quando foi apanhada uma jangada com gente que fugia para os Estados Unidos (50 pessoas), logo foram levador os três responsáveis para um «julgamento» ao ar livre e executados no «paredón». Em Fevereiro, tinham sido presas 75 pessoas. Entre eles, Raúl Rivero, poeta e escritor. Ele e mais 26 intelectuais começaram a ser julgados a 4 de Abril e foram condenados três dias depois. Ele a 20 anos de prisão em Canaleta por «actos contra a independência ou a integridade do Estado». No total, os 75 presos políticos acusados de delito de opinião foram condenados a 1450 anos de cadeia.
Esta brutalidade provocou um sobressalto mundial, chegando a União Europeia a interromper as relações comerciais com Cuba, assim como numerosas organizações internacionais, como os Repórteres Sem Fronteiras, ou a Amnistia Internacional. Fez-se uma campanha mundial que permitiu libertá-los nos anos seguintes. Alguns foram expulsos de Cuba e acolhidos em Espanha, onde vivem, como aconteceu com o jornalista e poeta Raúl Rivero.
Fidel adoeceu em Fevereiro de 2008. Muitos sonharam com eleições democráticas que ele próprio prometera mas que nunca realizou quando chegou a Havana em 1959. Sucedeu-lhe, porém, o irmão que hoje continua a ser o Presidente de Cuba, chefia o partido comunista cubano e é chefe supremo das forças armadas. Uma miserável e terrível ditadura que há mais de 50 anos oprime e martiriza o povo cubano.
Como escreveram os Repórteres Sem Fronteira no «Livro Negro de Cuba»: «Mas a sucessão de encantamentos, as utopias infatigavelmente recicladas, os incessantes passes de magia não são inocentes. Permitiram que regimes ditatoriais como o de Havana desmembrassem os seus próprios povos sem que alguns ousassem erguer uma voz crítica. Os bons sentimentos não conduzem obrigatoriamente à boa literatura, diz-se. São a raiz de algumas das grandes tragédias do século que agora terminou. E quantas desgraças foram impostas a esses povos que dizíamos – e ainda dizemos – defender, embora sem nunca lhes perguntarmos o que pensavam de tudo aquilo! Espantoso, sem dúvida, esse entusiasmo por crápulas exóticos vindo daqueles que se exaltam com a mais pequena limitação das liberdades no seu próprio país, sempre dispostos a saírem para a rua a pretexto da mais ínfima falta de democracia…»
Não posso, pois, deixar de lamentar a visita do Presidente da República português e a sua fotografia com o ditador cubano bem como as palavras por si usadas: «Condolências ao povo cubano.» Fidel e Raúl não têm a legitimidade democrática para representarem o povo cubano. São os rostos da repressão e da opressão da liberdade e da democracia em Cuba.
Estamos provavelmente a assistir à última farsa branqueadora do regime cubano pois, como disse Vargas Llosa, é provável que não lhe sobreviva. Disse mais: «Esperemos que esse processo seja rápido e, sobretudo, que decorra calmamente, que não envolva mais violência que aquela que o povo cubano já sofreu.» Assim o desejo igualmente.
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