Do "fuck it" ao "What the fuck"

JOÃO MIGUEL TAVARES   PÚBLICO    10.11.16
Hillary Clinton não foi a maior derrotada na madrugada de quarta-feira. À frente dela estão as empresas de sondagens. E à frente das empresas de sondagens estão os jornais, as televisões (a certa altura, até a Fox News se afastou de Trump), e basicamente todos nós, que trabalhamos na comunicação social. Uma lição para o falecido Emídio Rangel: sim, Donald Trump transformou-se numa figura nacional através da televisão; sim, a televisão deu-lhe muita atenção no início da corrida, quando parecia não ser mais do que o comic relief republicano; mas não, a televisão não consegue vender presidentes da República como quem vende sabonetes.
Trump foi destruído, gozado, arrasado, por tudo o que é revista e jornal; foi transformado numa caricatura patética por Alec Baldwin no Saturday Night Live e humilhado nos melhores talkshows. Entre as 200 principais publicações americanas, apenas seis apoiaram Trump. A comunicação social acompanhou obsessivamente a “locker room talk”, mais a dúzia de mulheres que testemunhou que Trump as tinha efectivamente assediado. Nada disso importou para a América branca, rural e pouco habilitada, que votou em massa no candidato menos qualificado da história das presidenciais americanas.
Porquê? Não vale a pena procurar uma razão muito precisa e circunscrita. Não foi a presença de Obama, que continua a ter bastante popularidade. Não foram os e-mails. Não foi o FBI. Foi um grande, enorme, gigantesco “fuck it!” – um voto anti-sistema de quem está profundamente zangado com a nova América e saudoso da velha (sete em cada dez apoiantes de Trump preferem os anos 50 ao mundo actual). Quase dois terços dos votantes declararam que Trump não tinha o temperamento certo para ser Presidente dos Estados Unidos. Ainda assim, 20% desses americanos votaram nele. Preferiram quebrar o sistema, até porque não acreditam que seja possível corrigi-lo. E quando se trata de partir, Donald Trump é o homem certo.  
Aquilo que os democratas jamais esperaram é que o eleitorado republicano ficasse imune a meses de infindáveis editoriais, artigos de opinião, ensaios, reportagens, debates televisivos e belos sketches humorísticos a sublinhar a fraude que Donald Trump era (e é). Daí que os democratas tenham escrito nas suas caras um grande, enorme, gigantesco “what the fuck?!?” – sim, havia algumas hipóteses de Trump ganhar, mas ninguém acreditava nisso. Os jornalistas gostam de olhar para si próprios como um contrapoder, mas frequentam os mesmos restaurantes dos políticos, vivem no mesmo ecossistema, usam os mesmos talheres. E dentro desse quadro mental – que também é o meu – não havia forma de Donald Trump vencer as eleições depois de tudo aquilo que disse e fez.
Nesse aspecto, somos todos um pouco cavaquistas: confrontado com os mesmos factos, qualquer cidadão deveria chegar à conclusão de que Trump era imprestável. E, de facto, entre os leitores do New York Times, Hillary Clinton arrasou Donald Trump. O problema é que 50% dos eleitores americanos não só estavam fora desse quadro mental liberal, qualificado e endinheirado, como o odiavam profundamente. Trump nunca se cansou de repetir que o sistema estava viciado e que a comunicação social comungava do vício. A mensagem passou: 60 milhões de americanos ignoraram olimpicamente tudo o que viram, leram e ouviram ao longo de ano e meio. Não admira o ar de defunto da comunicação social. No dia 8 de Novembro de 2016 ocorreu uma espectacular derrota do jornalismo.

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