Eu recebi pessoas que traziam a morte nos seus rostos
FAMÍLIA CRISTÃ 17.11.16
O arcebispo de Erbil, no Iraque, D. Bashar Warda, está em Portugal para a apresentação do relatório sobre a Liberdade Religiosa que a Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) promove hoje, na Sociedade de Geografia, em Lisboa. O prelado tem acolhido na sua diocese milhares de famílias iraquianas deslocadas, que fugiram da cidade de Mossul e das planícies de Nínive e agora aguardam pelo fim da guerra para regressarem às suas terras, e falou em entrevista à Família Cristã sobre como tem sido difícil chegar a toda a gente.
Como tem sido lidar com tantos deslocados dentro do Iraque?
Ainda recebem muitos deslocados?
Com tantas condições, elas alguma vez quererão regressar?
E está a ter sucesso?
Quem parte para fora do país nunca mais regressa, mas quem aí fica mais facilmente regressa a casa?
Tem ideia de quando será possível regressar a Mossul?
Como se deverá reconstruir a sociedade em Mossul?
Como é que pode ainda ficar pior?
Como acabar com o Daesh?
E porque é que não se acaba com isto?
A coligação está a ajudar a combater o Daesh. Preocupa-o a eleição de Donald Trump?
Primeiro foi muito difícil, desafiador, porque havia muito a questão «Porquê a mim, Deus?» Termos, num espaço de 24 horas, 13 mil famílias a fugir na nossa direção é aterrador e faz-nos questionar muito. Mas eu digo sempre que foi um ato de fé acolhê-los, estar lá, trabalhar com o que temos e ao fim do dia poder pensar «fiz tudo o que pude». Os milagres acontecem, e sim, as dificuldades diárias e as necessidades das pessoas – água, leite, comida – e tantas que não paravam de chegar...
Tivémos de abrir 26 campos de refugiados, 11 escolas públicas, centros, tendas... mais tarde começámos a instalar caravanas e alojámos algumas pessoas em apartamentos alugados. O Governo, não podendo ajudar financeiramente, deixou-nos à vontade para fazermos tudo o que conseguíssemos com os apoios que começavam a chegar. Com a ajuda de vários parceiros, como a Fundação AIS, os Cavaleiros de Colombo, a Conferência Episcopal de Itália, entre outros, hoje só temos um grande campo, com 1.200 famílias, em bom estado, e temos 1.200 casas alugadas pela Igreja, e ajudamos outros que têm algum dinheiro a alugar as suas casas também. Distribuímos 12 mil pacotes de ajuda alimentar, estamos a ajudar 3.000 doentes crónicos que vêm receber medicamentos mensalmente de graça, já para não falar do apoio pastoral, que existe desde o primeiro dia.
É o trabalho de Deus, porque Ele trabalha através de mim e de outros. Hoje posso dizer que, por causa da ajuda que recebemos, ainda temos famílias cristãs no Iraque. Sem esta ajuda, teria sido impossível que elas tivessem permanecido lá.
Ainda recebem muitos deslocados?
De Mossul e das planícies de Nínive, o êxodo parou, porque todos os cristãos saíram de lá. Mas começámos a receber pessoas de outras áreas mais longe, porque temos boas condições para as receber. Todas as crianças estão na escola, com boas notas.
Também recebemos famílias da Turquia e do Líbano, mas são uma minoria.
Estou a tentar proteger e manter com dignidade as famílias de cristãos que restam no Iraque. Não estou a tentar criar um Erbil que substitua as comunidades anteriores. O que pretendíamos era trabalhar em conjunto e convencer estas famílias a ficarem no país, e a não irem embora para a Europa. Tentamos que a espera não lhes traga sofrimento, respondendo às suas necessidades materiais até que seja tempo de voltarem para as suas terras. As pessoas já foram às suas vilas, e falam de 30% de destruição total, todas as igrejas foram destruídas e as outras 70% das casas estão danificadas ou precisam de reparação... há muitas necessidades, mas eu não quero que eles fiquem em Erbil, mas que regressem a suas casas quando houver condições. Aqui é apenas para os aliviar temporariamente e manter as famílias por perto, para evitar que tomem a decisão de emigrar.
E está a ter sucesso?
Com a ajuda de Deus e de outros, sim. Nós acolhemos 13 mil famílias e hoje temos ainda 10 mil famílias. Há muito trabalho a ser feito, temos pena pelas famílias que partiram, mas foi uma decisão sua. Sabemos que há muitas razões para partirem e nenhuma para ficar, mas tentamos trabalhar isso com elas. Temos famílias que até poderiam sair, têm dinheiro para isso, mas que escolhem ficar connosco, à espera de poder regressar às suas aldeias. Isso também nos dá motivação para continuar.
Quem parte para fora do país nunca mais regressa, mas quem aí fica mais facilmente regressa a casa?
É exatamente isso. Não queremos que passem a fronteira porque dificilmente voltam. Quem parte é porque tem algum apoio lá fora, mas temos casos de famílias que partiram, não receberam nenhuma ajuda, naufragaram a passar o mar para a Europa, e tiveram de regressar.
Há pouco tempo recebi duas famílias que regressaram depois de terem perdido tudo, inclusive os seus passaportes. Foram forçados a ir até à fronteira sem nada, e felizmente conseguiram ter ajuda da embaixada iraquiana para regressarem ao país. Mas há muitos que são enganados pelos contrabandistas: uma família que foi, perdeu tudo, teve de regressar e perdeu um filho nesta viagem, que está desaparecido. É aterrador, os contrabandistas não foram parados, é um negócio que se aproveita de pessoas que não têm outra escolha e as deixa sem nada.
Tem ideia de quando será possível regressar a Mossul?
Muitas pessoas já foram ver as aldeias, mas ainda aguardamos que Mossul seja completamente libertado do Daesh e se organize de novo a cidade politicamente. Para as pessoas de Mossul o regresso deverá demorar mais tempo que para os habitantes das planícies de Nínive, onde vive uma maioria de cristãos. Para aí devem seguir assim que Mossul esteja seguro e comecem os esforços de reconstrução. Acho que no verão de 2017 iremos começar a ver as famílias a regressar, até porque nesta altura já iniciaram os anos escolares e as crianças já estão na escola.
Como se deverá reconstruir a sociedade em Mossul?
Acho que uma das lições que as pessoas aprenderam, espero, é que temos de trabalhar em conjunto. Chega de disputas xiitas-sunitas. Respeito, proteção dos direitos de todos é a solução. O governo sabe bem os receios das minorias, porque sabe que nos sentimos traídos.
A comunidade muçulmana também sofreu com o Daesh, mas o verdadeiro genocídio foi cometido para com as minorias. Eu recebi pessoas que traziam a Morte nas suas caras, não tinham nada, e não sabiam nada sobre o futuro. Diria que, pelo que tenho ouvido, os políticos já perceberam que o caminho anterior não tinha servido, e que as coisas precisam de mudar.
Mossul é um desafio político para o novo Iraque, pós 2003. Se aprendermos com os erros do passado e ser virmos soluções pacíficas, poderemos ter aqui um futuro para todo o Iraque. Porque, e Deus assim o impeça, se assim não for, tudo ficará muito pior.
Como é que pode ainda ficar pior?
Se a guerra não continuar, as pessoas vão emigrar em massa, e as minorias irão mesmo desaparecer, porque as pessoas ficarão fartas de esperar.
Os cristãos e os yazidis sentem-se abandonados pela comunidade internacional, que nunca chegou a verdadeiramente atuar sobre as suspeitas de genocídio?
Os cristãos dir-lhe-ão que os políticos não fizeram nada pelos cristãos. Fomos visitados por muitos grupos internacionais de políticos, mas nada aconteceu. Presidentes, ministros, políticos visitavam, mas nada acontecia, e quando dizíamos que íamos ter a visita de alguém, a reação era sempre a mesma: «Eles vêm pelas fotos, pelas suas campanhas, não é para o nosso bem.» Todo o trabalho foi feito pela Igreja, não pelos políticos.
A Igreja enfrenta muitas críticas aqui na Europa. Mas a verdade é que, no que toca a crises humanitárias, se não fosse a Igreja, um mundo seria um lugar bem pior...
A Igreja é a voz das pessoas perseguidas. Quem é que, agora, fala pelos perseguidos? Quem é que tomou a seu cargo o apoio dos pobres? Quem fala de cuidados de saúde? A fé não é apenas rezar e estar na igreja, é tomar o que temos na igreja para o mundo exterior, e tentar espalhar esta Boa Nova. A Igreja é incapaz de resolver o mal que existe no mundo, mas está lá com as pessoas, não as abandona. Nós não podemos combater o Daesh, mas podemos acompanhar as suas vítimas. Não podemos combater os terroristas, mas podemos ser uma voz para as pessoas que estão a sofrer com isto.
E, ao mesmo tempo, quando estamos com os pobres e necessitados, com os perseguidos pela sua fé, permitimos que Deus penetre mais no coração das pessoas e coloque questões. «Aquelas pessoas são perseguidas por terem Cristo nas suas vidas, mas o que é isto de ter Cristo nas suas vidas? Porque é que elas são perseguidas e mantêm a sua fé?» Estas dúvidas são o testemunho que os perseguidos podem levar até às pessoas na Europa que estão a abandonar a sua fé.
Como acabar com o Daesh?
Para um bispo como eu, falar em guerra é algo de complicado. Mas quando estamos a falar de um grupo destes, que recusa qualquer tipo de diálogo e comete todos estes crimes, para mim é um cancro. E temos de acabar com o cancro, sabendo que é um processo doloroso, mas inevitável.
Mas isto exige também um pacote de reconciliação, que tem de evitar que isto volte a acontecer.
E porque é que não se acaba com isto?
Não é fácil, é muito complicado, porque este é um negócio do Mal. Podemos ver pessoas que vivem em tendas, que estão deslocadas há 13 meses de suas casas, das suas terras, das suas vidas, e elas dir-lhe-ão isso. Sem falar nas que foram massacradas.
Acredita que a pressa em impor regimes democráticos não faz sentido, e que o povo é que deve escolher esse caminho, de forma calma?
Há dois pontos de vista. Uns dizem que, no fim do dia, temos de ser um país democrático como os outros e ponto final, e temos de nos apressar, não interessa as consequências.
Mas eu diria que a democracia não é apenas eleger este ou aquele, é uma cultura, e a cultura começa de se ensinar aos quatro anos, na escola. Muitos destes países ainda têm a mentalidade de beduíno, o Estado e as instituições são uma fachada, porque na verdade o que há é lealdade à tribo, à família, e eles ajudam-se uns aos outros nas tribos. Como é que se impõe nesta mentalidade a democracia, que, nos países que agora a querem impor, demorou 300 ou 400 anos a impor-se, países que têm o Cristianismo, o Evangelho, Filosofia, grandes escolas e universidades. Eles aprenderam a faze-lo num período difícil, com muitas mortes. Trazer tudo isto para uma mentalidade de beduínos? Bom, boa sorte...
No Iraque, em 1980, éramos um dos países com uma educação muito boa, agora somos um dos piores. Como é que vamos ensinar democracia a estas pessoas?
Não quero com isto justificar a ditadura, porque eu também vivia lá na altura em que tinha de ter muito cuidado com o que dizia, porque as minhas palavras iam chegar ao governo, e eu podia ser castigado. Mas é uma cultura, e isto leva tempo. Acho que foi preciso forçar uma mudança, mas a mudança foi feita de forma muito rápida e sem conhecerem bem a cultura. Hoje as pessoas diriam, «sim, já sabemos como fazer», mas é tarde demais. Espero que os outros países que ainda estão a passar pela transformação aprendam com o nosso exemplo e não apressem as coisas.
Sempre disse que os americanos são responsáveis moralmente pelo que aconteceu no Iraque. Há uma responsabilidade moral que os americanos têm de assumir, e têm de terminar o trabalho, é muito tarde para dizer se foi bom ou mau, o que me preocupa é o meu país, as minhas pessoas, e eles são responsáveis. Espero que possam trabalhar com todas as pessoas, inclusive aquelas com quem não concordam, para trazer a paz e a mudança. Como é que trazemos a mudança se não houver um ambiente de paz e estabilidade para o diálogo? Se o fizerem à força, ficam com outra guerra.
Ouvimos muitas histórias de como a fé ajuda, mas também falou dos sentimentos de dúvida das pessoas. Como é que foi gerir estes sentimentos contraditórios?
Estando presente lá, com as pessoas. É bom fazer perguntas, mas não demais. Se passarmos os dias a perguntar porquê, alguém nos vai dizer «para de meditar e faz qualquer coisa por nós». Acredito em colocar questões, mas confiar que algo de bom vai acontecer. Eu já vi milagres, porque já adormeci com dúvidas, questões e crises, e acordei com emails, telefonemas e grupos a chegar com ajuda para as crises que eu tinha. Estar lá, pronto para o que surgir, confiar que Deus irá agir, porque mesmo quando as pessoas nos perguntavam «porquê nós?», nós respondíamos que Deus estava a caminhar com eles, e que deixarem-nos ajudá-los era a nossa maneira de servir a Deus. Quando estás lá, não perdes muito tempo a pensar, porque não tens tempo, as pessoas precisam de ti, e se confiares em Deus, verás que Ele fará com que tudo o que precisas aconteça.
Texto: Ricardo Perna
Fotos: Ricardo Perna e Fundação AIS
Fotos: Ricardo Perna e Fundação AIS
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