Na Síria, «ser cristão é sinal de martírio»
FAMÍLIA CRISTÃ 23.11.16
A Ir. Guadalupe, religiosa argentina da congregação do Verbo Encarnado, tem estado em missão na Síria, em Aleppo, e acusa os terroristas islâmicos de terem um «plano» para «acabar com a minoria cristã que incomoda» nos países que pretendem vir a ser governados por fundamentalistas islâmicos.
A religiosa esteve em Portugal para dar o seu testemunho sobre a situação que se vive na Síria, mais propriamente em Aleppo, onde está desde janeiro de 2011, a convite da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre, e falou à Família Cristã sobre a realidade do terreno.
Numa cidade onde viviam 500 mil cristãos e agora vivem «cerca de 20 a 25 mil, não mais», como nos conta, a fé tem sido a tábua de salvação de quem lá ficou e ainda resiste com vida. «Eles não questionam Deus por causa disto. Não é que não se queixem, claro, porque a situação é terrível, mas não questionam Deus. Isto só se entende pela fé. Fazem questões, têm queixas, mas sempre terminam a dizer “Deus sabe porque permite isto, é o melhor para nós, estávamos a necessitar desta purificação da sua fé”. As pessoas sabem que, apesar de terem perdido tudo materialmente, ganharam muito espiritualmente, e isto vê-se no seu dia-a-dia. Tive uma senhora que me disse “estes últimos anos foram os mais felizes da minha vida”. Como pode dizer-te isto uma senhora que vive em ambiente de guerra, que tinha uma empresa, que perdeu a família? Ganhou fé, passou a viver uma vida mais de graça, com participação diária na santa missa, e isso dá-te uma alegria que mais nada te pode dar», sustenta.
É por isso que usa, com orgulho, uma cruz tatuada no seu pulso direito. «É a cruz egípcia copta, a marca dos cristãos. No Egipto, os pais levam os filhos, ainda pequenos, aos mosteiros e são os monges que tatuam a cruz. Para nos distinguirmos como cristãos, para sermos símbolo da igreja perseguida, como sempre foram os cristãos naqueles países. E somos muitas vezes identificados como tal, porque as pessoas olham para o braço a ver se sabem com quem estão a falar. Isto dá muita força aos cristãos», reforça.
Um gesto de coragem, quando muitos pensariam em esconder-se. «Exatamente (risos), mas ninguém o esconde! A identidade do cristão é muito clara, e o cristão di-lo a toda a gente». Mesmo que isso implique a morte. «As mães que levam os filhos para receberem esta marca estão a prepará-los para o martírio. Isto para nós parece estranho, mas para eles é o normal, é a mostra suprema de Amor, dar a vida por alguém, como Jesus nos disse. Se nos pedissem que déssemos a vida por alguém, e disséssemos que não, então não seria Amor. Amo tanto Jesus Cristo que daria a minha vida por Ele. Ser cristão é sinal e pode implicar o martírio, a prova suprema de amor», avisa a Ir. Guadalupe.
Presidente sírio não deve ser deposto
Esta religiosa viveu todo o conflito sírio na primeira pessoa. «Cheguei a Aleppo em janeiro de 2011, meses antes de começar o conflito. A guerra veio de um dia para o outro, e nós, em Aleppo, não o esperávamos. Quando começaram as manifestações que a comunicação social dizia serem de sírios, já sabíamos que não eram sírios, eram grupos armados que vinham de fora do país. De um dia para o outro, passámos a ouvir bombas a cair, balas a entrar pelas janelas, e esta “música de fundo” já faz parte das nossas vidas há anos», relata a irmã, que acusa a comunidade internacional de distorcer a verdade dos factos para justificar a sua entrada na Síria. «Não existe oposição interna ao presidente sírio, isso é uma mentira inventada pelo ocidente, pelos que vieram fazer a guerra. Precisavam de uma desculpa, e a desculpa ideal foi dizer “vejam como vive esta gente oprimida pelo presidente, temos de as libertar”. Mas a discussão nunca foi pelo povo. O povo ia votando e dizia sim ao seu presidente», afirma a irmã.
Mas como é possível dizer sim a um presidente ditador? «É difícil de entender isto, porque são regimes opressores, onde não existe liberdade de expressão completa, mas as pessoas preferem-no, porque sabem que ou é isso ou o fundamentalismo islâmico. Entre os dois, é fácil escolher…», justifica a religiosa. É por isso que acha que «seria um grave erro tentar depor o presidente sírio, porque isso iria mergulhar o país no caos, como aconteceu no Iraque», defende.
Para além desta “ideia” de opressão, existe muito a ideia de que estas pessoas vivam mal na Síria, um conceito errado que já tinha sido desmistificado pela Ir. Myri, uma monja portuguesa que está em Damasco, numa entrevista à Família Cristã. «É preciso perceber que as pessoas viviam, de facto, muito bem. Há uma ideia errada aqui na Europa de que os refugiados são pessoas que vivam sem nada, muito pobres, e que vieram melhorar a vida na Europa. Nada disso! Eram pessoas que vivam muito bem, que tinham tudo na Síria», sustenta a Ir. Guadalupe.
Confiança na canonização destes mártires por causa da fé
Esta religiosa acredita que os cristãos da Síria «serão canonizados», à semelhança do que já fez a Igreja Copta Ortodoxa, que canonizou 20 cristãos e 1 muçulmano por causa do seu martírio. «Isso sucederá no futuro com a Igreja Católica. Mas acho que devemos aproveitar os mártires já, e não apenas quando estiverem numa pagela. Há mártires todos os dias e são os mártires do nosso tempo, somos contemporâneos com estes mártires, e podemos aproveitar os seus méritos», diz.
Até porque, acredita, «tanto sangue derramado não é em vão». «Podemos rezar por eles, e receber os seus méritos se estamos unidos com eles na oração. Isto está a mudar a vida a muita gente no Ocidente. Gente que escuta o testemunho que damos e que deixa o pecado, volta à vida de graça, deixa os vícios. Muitíssimos. Todas as vezes que damos um testemunho, há pessoas que nos deixam mensagens a dizer isso mesmo», argumenta.
Há quem defenda que estes conflitos provam que Deus não existe, por permitir tanto sofrimento, mas para a Ir. Guadalupe é exatamente ao contrário. «Deus não pede esta violência, mas consegue retirar dali algum Bem, tem esta habilidade, de retirar o Bem mesmo de um Mal tão grande quanto este», explica.
Um respeito verdadeiro e extremo pela liberdade humana. «Deus respeita verdadeiramente a liberdade humana. Isto não são palavras vãs. Ele criou-nos livres, e por isso a culpa de tudo isto não é de Deus, mas sim dos homens», acredita.
Aos cristãos portugueses, pede duas coisas: oração e ajuda na difusão da mensagem sobre o que «de verdade» se passa no país. «Os portugueses podem ajudar com a oração, em primeiro lugar. E difundindo o que de verdade se está a passar, porque há um grande problema de ignorância e desinformação, e a opinião pública na europa poderia pressionar as organizações internacionais para que ponham os meios eficazes no terreno para acabar com isto», afirmou.
Comentários