Extrema gravidade

Extremismo e demagogia são forças terríveis, não apenas pela sua maldade e mentira intrínsecas, mas por serem contagiosas. Na verdade, enfrentando forças intolerantes e manipuladoras, muitos sentem um impulso no sentido inverso, caindo no extremo oposto.

A vitória do brexit no referendo de Junho foi um grande êxito para os eurocépticos, que impuseram a sua posição, mas também ajudou os federalistas, agora decretando a sua forma radical de integração como única maneira de salvar a União. Na eleição de Trump o sucesso decisivo foi das forças xenófobas, proteccionistas e intolerantes. Mas os radicais de esquerda têm igualmente um ganho substancial, conseguindo um detestável inimigo comum como causa unificadora e mote empolgante. Nestes e noutros casos semelhantes, quem mais perde é a moderação, o equilíbrio, a concórdia. No limite, alguns assuntos tornam-se impossíveis de discutir serenamente, de tal maneira os partidários apaixonados dominam o panorama.
O fenómeno está em crescimento nos dias que correm, mesmo em quadrantes inesperados. Nos últimos dias a Ordem dos Psicólogos Portugueses vive grande turbulência devido às declarações da presidente da Associação dos Psicólogos Católicos. Numa entrevista, a Dra. Maria José Vilaça disse, acerca da homossexualidade na família, que "eu aceito o meu filho, amo-o se calhar até mais, porque sei que ele vive de uma forma que eu sei que não é natural e que o faz sofrer. É como ter um filho toxicodependente, não vou dizer que é bom". Isto gerou enorme polémica pública, mas também a intervenção da referida Ordem, motivando um comunicado a 13 de Novembro e uma entrevista do seu bastonário ao último Expresso. Estes factos menores partilham muitos elementos em comum com o recente clima que se vive no Reino Unido e nos EUA.
Primeiro, a substância da questão. A Ordem dos Psicólogos sabe muito dessa ciência, mas aparentemente tem falhas graves de filosofia e gramática. Ela pode determinar se a homossexualidade é, ou não, uma doença, mas o conceito de "natural" é filosófico, não científico. Por outro lado, a Ordem não pode impor uma interpretação semântica do texto. Fazer uma comparação não implica identidade, e duas coisas podem ter consequências semelhantes e origens muito diferentes. Quando eu afirmo que a dívida pública é uma toxicodependência não é preciso o senhor bastonário da Ordem dos Economistas vir dizer que as minhas declarações são extremamente graves por estar provado cientificamente que a situação orçamental não é uma doença.
Pior são os elementos formais. A questão foi, como devia, submetida ao Conselho Jurisdicional da Ordem. Mas a direcção desta não se coibiu de emitir já um comunicado e uma entrevista, apresentando um severo veredicto antecipado sobre o tema. Nas sociedades civilizadas uma pessoa é considerada inocente até ser condenada. Estas intervenções públicas da cúpula da Ordem constituem uma gravíssima pressão sobre o órgão jurídico, irregularidade que deveria acarretar a demissão dos dirigentes da instituição. Pessoalmente, o senhor bastonário pode ter as opiniões que quiser; mas quando fala em nome da autoridade reguladora da sua profissão tem de manter o decoro, a imparcialidade e a dignidade próprios do cargo. As suas declarações nesta altura podem ser política e psicologicamente compreensíveis, mas são institucionalmente inaceitáveis e condenáveis.
Em terceiro lugar existem até falhas da mais elementar lógica. Em ambas as intervenções públicas da Ordem acerca da posição da Dra. Vilaça é usado o qualificativo de "extrema gravidade". Este é o máximo de repúdio. A afirmação em causa é que a psicóloga amaria um filho homossexual, condição que considera não natural. São estas as declarações de extrema gravidade? Como classificaria então a Ordem um psicólogo que aconselhasse odiar o filho ou bater nos homossexuais? Extremíssima gravidade?
O pior de tudo é a afirmação que o semanário escolheu para título: "O psicólogo não pode pôr as crenças à frente do trabalho." Esta é uma frase digna de Nigel Farage ou Donald Trump: os extremistas é que colocam a sua acção e objectivos acima de tudo. As pessoas civilizadas dão prioridade aos valores em que acreditam: verdade, justiça, dignidade, honra, subordinando tudo a isso, sobretudo o trabalho.
A Ordem dos Psicólogos tem o poder para regular essa profissão em Portugal. Mas se o faz da forma que o senhor bastonário indica, estamos na mão de fanáticos submetidos à ditadura da opinião dominante, fazendo declarações de extrema gravidade.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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