Ataque abominável

GRAÇA FRANCO   25.11.16   RR


A França republicana laica e socialista não deve espantar-se nem espantar-nos quando acabar nos braços de Le Pen.
Tenho entre os meus melhores amigos, pais e irmãos de crianças, jovens e adultos com o síndrome de Down. Vivi de perto a angústia dos que receberam essa notícia embrulhada no meio de um enxoval em rendinhas de um medo impenetrável: o que vai ser dele e o que será de nós? Iremos sobreviver-lhe ou abandoná-lo no mundo limitado à nossa ausência, num país de apoios inexistentes? O que poderá ele aprender? A apertar os atacadores ou a falar inglês?
Será que vai conseguir atravessar a rua sozinho, ou poderá um dia ir sozinho para o trabalho no outro lado da cidade? Até onde irá a sua autonomia? Poderá comer sozinho ou a dada altura, arrendar o seu próprio apartamento? Conheço casos de sucesso absoluto onde o amor se vive entre algumas dificuldades e muitos mais momentos de alegria. Sei de pais que morreram cuidados pelos seus filhos com trissomia 21.
Nada mais natural que perante o diagnóstico de uma doença tão mitificada uma mãe procure ajuda às várias associações que trabalham com crianças e pais em situação idêntica: estou assustada! Digam-me com o que posso contar? Que tipo de filho terei, que tipo de mãe terei de ser?
A resposta a esta inquietação foi magnificamente dada num anúncio em França sob a forma de “carta escrita à futura mãe”. Como se fossem o seu, cerca de duas dezenas de crianças diziam-lhe entre sorrisos que padeciam da mesma doença e que o seu futuro bebé seria capaz de a amar e de lhe dar múltiplas alegrias, à mistura com muitos dias negros em que teria de vencer obstáculos que lhe pareciam impossíveis (como os que passam tantos outros pais). Os intervenientes tinham em comum serem mães e filhos sorridentes, que mostravam que a alegria e a vida não têm apenas de seguir o mesmo padrão.
Um anúncio comovedor e simples contra a discriminação da deficiência, que pode ver no nosso site, em que se luta pelo direito à felicidade de todos. Visto pelo conselho de audiovisual francês, a decisão foi proibir a sua exibição para não “criar problemas de consciência” a mulheres que tivessem “legalmente” escolhido abortar em situações idênticas às da mãe perguntadora e “assustada”.
Para não ofender esses 90% que abortam, não se preocuparam os decisores em atribuir como pena acessória da escolha, igualmente “legal”, de levar a gravidez até ao fim, o claro sinal de que não tinham a partir dessa decisão o direito a ser felizes ou a fazer os filhos felizes. Restava-lhes viver no silêncio escondido as consequências da respectiva escolha.
A França das liberdades não exagerou aqui apenas na imposição do “politicamente correcto”, deu um passo muito além em matéria de liberdade de escolha: esta só existe se não for devidamente informada, ou seja, quanto mais “induzida seja a vontade da mulher”, melhor. Não vá a informação levantar-lhe, antes ou depois, algum problema de consciência. A escolha formalmente “livre” quanto mais inconsciente melhor.
Este ataque à mais elementar liberdade de expressão não pode confundir-se com um acto de compaixão por quem escolheu um lado, é ter a maior impiedade por quem ousou escolher o outro, é dizer-lhe que a vida que decidiu salvar além de inútil terá ainda de ser triste. É dizer aos meus amigos com trissomia que o seu amor não basta e não merecem estar vivos. Mesmo aos que têm uma vida praticamente normal, são inteligentes, autónomos e felizes. Como tanta gente diferente cuja vida é preciosa para cada um dos que com eles se cruzam. Este acto de censura abominável é eugenia encapotada. A França republicana laica e socialista não deve espantar-se nem espantar-nos quando acabar nos braços de Le Pen. Querem motivos para perceber o senhor Trump? Tudo o que há de pior começa assim.

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