Guarda: 100 casos anuais de crianças retiradas aos pais ou rejeitadas à nascença

RR   22.11.16

O Hospital Sousa Martins, na Guarda, regista uma média anual de 100 casos de crianças retiradas aos pais ou rejeitadas à nascença pelos progenitores. Ficam meses – ou anos – à espera de um destino por falta de resposta das instituições de acolhimento.
Enquanto não se encontra uma vaga numa instituição ou uma família de acolhimento, a criança é obrigada a permanecer na unidade hospitalar, onde há mesmo registo de um caso de um bebé que ali cresceu até aos dois anos. Aprendeu a falar e a dar os primeiros passos com as enfermeiras do serviço de pediatria.
O hospital da Guarda recebeu, em 2015, da Unicef, a designação de “Hospital Amigo dos Bebés”. Para muitas crianças, a unidade é a primeira porta de abrigo e, por vezes, a única.
O filme que o pequeno Dinis via no computador portátil quando a Renascença visitou o Núcleo Hospitalar de Crianças e Jovens em Risco do hospital da Guarda é interrompido: é hora de ir até à miniescola do serviço de pediatria. “Às vezes, está a sala apinhada. Na semana passada, parecia uma verdadeira escola”, elogia a professora Paula Afonso.
“A nossa função é tentar detectar alguma problemática de génese social, que possa afectar uma criança ou adolescente”, explica o director do serviço de pediatria do hospital, António Mendes.
“Temos os mais variados casos - de abuso sexual, maus-tratos físicos e psicológicos - e são sempre entregues ao Ministério Público ou às CPCJ que, depois, nos dizem quando é que aquela criança pode sair do hospital. E temos também os casos das mães que vêm cá ter os bebés, dizem que não querem ficar com essas crianças e nós temos que ficar com elas e protegê-las”, elabora.
Crescer no hospital
O problema merece uma “preocupação especial” há cerca de cinco anos. “Nessa altura, tínhamos por ano meia dúzia de casos com problemática social. Hoje, temos números que no fim do ano se aproximam dos cem”, relata.
Para o director do serviço de pediatria, o mais importante é dar à criança uma família. “Todos nós ficamos sensibilizados quando uma mãe diz que não quer o seu filho, mas o fundamental é que que aquela criança possa ter uma família”, defende António Mendes. “As crianças ficam aqui tempo demais num número significativo: há crianças que ficam semanas, arriscaria dizer meses.”
O médico diz que falta “celeridade” na resposta das instituições “por falta de condições”, por exemplo, para acolher crianças com determinadas doenças.
Há 10 anos à frente do serviço de pediatria do hospital da Guarda, António Mendes já não se escandaliza com os casos que batem à porta da sua unidade. Um caso marcou-o de forma profunda. “Estou-me a recordar de uma criança que permaneceu cá alguns meses. O pessoal fazia-lhe as festas de anos, compravam-lhe brinquedos”, conta a sorrir. “As crianças quando permanecem muito tempo no serviço são ‘adoptadas’ e há sempre na equipa quem se ligue mais a uma criança e a ‘adopte’, conclui.
Os “alguns meses” foram, na verdade, dois anos passados no hospital da Guarda. “Saiu no ano passado, em Abril”, conta a enfermeira-chefe Elisabete Ferreira. “Era prematuro, tinha algumas malformações e acabou por ser abandonado, nunca chegaram a manifestar vontade de o levar para casa. Queriam-no, mas aqui, no hospital. Roubámos-lhe dois anos de integração numa família, mas transmitimos-lhe à nossa maneira os valores da vinculação. Tinha era muitas mães, muitos pais, muitos tios.”
“Aprendeu os nossos hábitos, os dos enfermeiros. Ele ajudava naquilo que o enfermeiro fazia, fazia tudo connosco”, recorda. “Eram as referências que ele tinha. Aprendeu connosco a falar, a brincar, a andar. Damos-lhes o máximo de conforto a estas crianças, mas isso não é o bastante. Eles precisam de uma família que os proteja e o hospital não os protege - é um meio onde há infecções, não é o local ideal”, diz Elisabete Ferreira, que classifica como excessivo o tempo que demoram os processos de adopção.
Além dos enfermeiros e médicos, o Núcleo Hospitalar de Crianças e Jovens em Risco do hospital da Guarda tem uma psicóloga. Tânia Prata é chamada na hora em que uma mãe desiste de ser mãe. “Tentamos perceber porque é que numa primeira fase a mãe rejeita a criança, avaliar muito bem esta situação e percebermos se há suportes familiares e sociais para ajudar aquela mãe”, afirma.
Quem dá o primeiro alerta para estes casos é a assistente social do serviço de pediatria do hospital da Guarda, Alexandra Alexandre. Durante a visita da Renascença ao hospital, registou-se um novo caso: a mãe teve alta, a bebé ficou. “Uma família completamente disfuncional. Estamos a aguardar a decisão da CPCJ da localidade. O que é que eu posso dizer mais?”
“Cada vez mais casos”
A Comissão de Protecção de Crianças e Jovens da Guarda, uma das 13 existentes no distrito da Guarda, registou no primeiro semestre deste ano 113 processos activos.
A presidente da CPCJ da Guarda, Ana Isabel Baptista, admite que as vagas para receber as crianças em contexto de problemática social são muito reduzidas. “Temos tido cada vez mais casos, sobretudo de violência domestica, em contexto de divórcios, situações muito graves, que temos que encaminhar para instituições. São casos demorados”, reconhece.
Enquanto não se encontra uma vaga numa instituição, ou uma família de acolhimento, a criança é obrigada a permanecer no hospital.
“Já me senti mãe de várias crianças, muitas vezes. Ainda ontem contactei com um e perguntei-lhe: ‘Estás feliz?’. ‘Sim, estou muito feliz’. As fotos que nos manda é de uma criança completamente feliz”, confidencia a enfermeira-chefe Elisabete Ferreira.

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