Eles falaram. Mas insistem em não os ouvir

JOSÉ MANUEL FERNANDES   OBSERVADOR  14.11.16
Trump venceu e vêm aí novas tempestades, agora na Europa. Assim, que tal deixar de insultar e menosprezar os seus eleitores e começar a tentar perceber as (muitas) razões de quem vota nos populistas?
Lixo branco. “White trash”. Aqui chegámos. De uma forma ou outra, quem votou em Donald Trump não presta. São velhos. Incultos. Pobres. Vivem longe do cosmopolitismo dos centros urbanos. E, claro, são racistas. Machistas. Xenófobos. E por aí adiante.
Uma parte do que escrevi atrás foi escrito em letra de forma nos mais consagrados órgãos de informação, dito por doutorados de ciências políticas no prime time dos mais sisudos canais de televisão. A outra parte foi acrescentada nas redes sociais e nas caixas de comentários pelo exército de militantes do costume (aliás as redes sociais, que Obama tão “brilhantemente” usara, passaram agora a ser as responsáveis pela vitória de Trump, apesar de serem mais utilizadas pelos novos do que pelos velhos e pelos letrados do que pelos iletrados, mas isso é só um dos sinais de como a eleição norte-americana toldou demasiado os espíritos).
Talvez seja altura de, em vez de batermos com a cabeça na parede, tentarmos perceber o que se passou – e darmos ouvidos à mensagem dos eleitores. Fazermos, no fundo, aquilo que há muito devíamos estar a fazer, nomeadamente nesta Europa onde, nas últimas eleições europeias, todos os sinais vermelhos se acenderam e depois tudo continuou na mesma, como se nada tivesse ocorrido.
Talvez seja altura de perceber que a coligação que elegeu Trump inclui mulheres (a maioria das mulheres brancas, apesar das boçalidades que lhe ouvimos), inclui latinos (um terço deles), inclui muçulmanos (que tal lerem este artigo, por exemplo?), inclui muita gente das classes altas e ilustradas (votou nela a maioria dos que ganha mais de 100 mil dólares por ano, por exemplo). Nessa altura abandonaremos a caricatura e poderemos começar a perceber as razões da vitória populista, algo que não se consegue insistindo nas ideias feitas e nos preconceitos.
Eu sei que é difícil fazer este exercício. Como escrevi ainda antes das eleições, a América está profundamente dividida e já nem sequer se ouve uma à outra. Mas agora não é possível deixar de fazê-lo. Ou seja, não é possível deixar de responder afirmativamente à pergunta deixada na Pensilvânia profunda por um eleitor de Trump à reportagem do Observador: “Agora já nos ouvem?

Um grito: “Basta!”

A mensagem que esses eleitores enviaram é forte e pode ser sintetizada em poucas palavras: sentem-se estranhos na sua própria terra. Primeiro, porque muitos deles têm a percepção que ficaram do lado dos derrotados da globalização. Depois, porque se sentem abandonados pelas elites políticas, que pedem o seu voto e depois fazem o que entendem. Finalmente, porque não suportam mais a ditadura do politicamente correcto, as imposições sobre o que se tem de pensar e o que se pode ou não pode dizer.
Comecemos pelo fim. Na maior parte dos jornais e televisões o mundo divide-se em “bons” – os que são tolerantes e solidários – e “maus” – os que não abdicam da sua identidade e da sua cultura. Os “bons”, que por regra são mais educados e vivem do lado certo das nossas cidades, são os que saem à rua em solidariedade com os imigrantes e depois vão dormir descansados; os “maus”, que por regra têm piores empregos e vivem (ou viviam) junto dos imigrantes ou dos seus “acampamentos”, são os que de vez em quando explodem e dizem “Basta!”. Nessa altura passam a ser xenófobos sem salvação.
No discurso dominante, os “maus” são extremistas. Na prática, ao mesmo tempo que há reais extremistas a explorar este mal-estar, do lado dos “bons” ninguém repara como estes, por exemplo, baniram a liberdade de expressão dos campus universitários norte-americanos e em muitas universidades europeias. Os “bons”, os tolerantes, os cosmopolitas, são os mesmos que impediram apoiantes de Hillary Clinton de falar, até mesmo de dizerem que o eram, quando esta ainda disputava a nomeação com Bernie Sanders, os que em Madrid silenciaram o histórico socialista Felipe Gonzalez na Universidade Complutense, para já não falar nos que desconvidaram o Papa Bento XVI da Universidade La Sapienza, de Roma, onde este iria ler uma das mais brilhantes e estimulantes palestras do seu Pontificado.
O sectarismo da Fox News teve nos Estados Unidos o sucesso que teve – e que não é de agora – por causa desta duplicidade que domina os grandes jornais e as grandes cadeias de televisão. De resto quem tivesse seguido, como eu segui, a CNN nas horas e dias que se seguiram à surpreendente vitória de Trump perderia qualquer ilusão e perceberia porque muitos a conhecem como “Clinton News Network”. A Fox é o espelho aberrante deste mal disfarçado facciosismo.
Depois há essa percepção de que a democracia foi esvaziada de propósito, que já não se controla quem está nos governos, que nem sequer se compreende como as decisões são tomadas. Nos Estados Unidos o ressentimento vai para o que se passa no interior do “beltway”, o grande anel de autoestradas que rodeia Washington DC. Lá dentro é outro mundo – e é mesmo: Trump só conseguiu 5% dos votos nessa “ilha” onde, a oriente, vivem as minorias (sobretudo negros) e, a ocidente, os poderosos. Na Europa o centro do ressentimento é “Bruxelas”, o coração do poder da União Europeia.
Tomemos o que nos está mais perto. Desde pelo menos 2005 que os eleitorados europeus têm vindo a dizer que não querem “mais Europa”. Foi nesse ano que, em França e na Holanda, o projecto de Tratado Constitucional foi chumbado em referendo. O que fizeram então os líderes europeus? Deram-lhe outro nome (Tratado de Lisboa) e prosseguiram assegurando-se que não haveria mais referendos (excepto na Irlanda, onde os referendos seriam repetidos até que deles saísse o resultado “certo”). Em 2014, nas eleições europeias, os partidos eurocépticos tiveram os melhores resultados de sempre. O que fizeram os líderes europeus? Escolheram para presidir à Comissão Europeia um desequilibrado federalista (Juncker) e para presidor ao Parlamento Europeu um outro federalista que nunca foi sequer eleito para um lugar de relevo no seu próprio país (Schulz). Não surpreende que ambos tenham estado entre os que reagiram de forma mais agreste e sectária aos resultados do referendo britânico que decidiu o Brexit.

Os erros de Jorge Sampaio

Este desprezo pela vontade dos eleitores é próprio dos que se julgam iluminados, dos que acreditam terem uma utopia redentora que devem prosseguir a todo o custo e se vêem como uma vanguarda que conduz os povos na boa direcção. Mesmo quando lhes dá um rebate de consciência, é de curta duração.
Tomemos, por exemplo, o ensaio de Jorge Sampaio no Público. Ao mesmo tempo que se reconhece estarmos a caminho do desastre, antevendo até “as próximas etapas prováveis desta corrida para o abismo”, ao mesmo tempo que se escreve “que nada poderá continuar a ser business as usual”, todos os caminhos que se propõem revelam que não se está a escutar os eleitores que votam nos populistas.
A prudência e a humildade devia obrigar-nos a rever posicionamentos. Jorge Sampaio prefere antes fazer “um exercício de militantismo europeu”. Susto, penso eu. Maior susto ainda quando se sugere “uma outra Europa” ainda mais integrada do que a actual. Por exemplo: “não havendo progressos na união orçamental e mantendo-se a situação actual, não há forma de o orçamento comunitário (ou da zona euro, aliás, inexistente) poder absorver os choques assimétricos que se fazem sentir em países particulares”.
O que aqui está sugerido pode parecer inócuo mas não é. Primeiro: mais “união orçamental” significará sempre mais poder de Bruxelas na definição dos orçamentos nacionais, logo mais choques entre as escolhas dos parlamentos nacionais e as escolhas da Comissão Europeia e dos seus burocratas. O exercício do verdadeiro poder ficaria mais longe dos cidadãos. A sensação de que tudo é decidido por gente sem rosto agravar-se-ia. Querem melhor para que o populismo medre, sobretudo no sul da Europa, onde as divergências com Bruxelas são maiores?
E depois repare-se na proposta de um orçamento comunitário reforçado. Quem o pagaria? Os países do norte. Para onde iria o dinheiro destinado a “absorver os choques assimétricos”? Para os países do sul. Querem melhor receita para impulsionar os nacionalistas radicais em países como a Alemanha?
Já escrevi inúmeras vezes e repito de novo: a Europa tem de saber fazer marcha-atrás quando percebe que está a ir contra uma parede. O Brexit pode ser uma oportunidade para alguma “desconstrução” da União Europeia, algo que Jorge Sampaio equipara a “destruição” mas que os eleitorados claramente desejam. Será muito difícil de perceber?

Cabeça fria e humildade democrática

Mais: da mesma forma que defendo esta necessidade de prudência na União Europeia, defendo que também não se pode ignorar o sentimento de deserdados da globalização de muitos destes eleitores.
A globalização trouxe-nos enormes benefícios – sobretudo aos mais pobres dos países mais pobres, mas também a quase todos no mundo desenvolvido. Como escreveu este fim-de-semana no Financial Times Francis Fukuyama, “entre 1970 e a crise financeira de 2008, a produção global de bens e serviços quadruplicou, libertando da pobreza centenas de milhões de seres humanos, não apenas na China e na Índia, mas também na América Latina e na África subsaariana”. O reverso desta medalha foi a desindustrialização de regiões inteiras, como o agora famoso “rust belt” (a “cintura da ferrugem”) nos estados que antes votavam democrata e agora votaram republicano, elegendo Trump.
O clamoroso falhanço da esquerda moderada, que se mostrou incapaz de representar estes novos deserdados – ocupada que estava com as minorias e as causas fracturantes – criou o caldo de cultura dos populismos nacionalistas nos Estados Unidos e na Europa do Norte e dos populismos de esquerda na Europa do Sul. Fingir que o problema não existe ou que pode desaparecer por si é uma perigosa ilusão. Por isso, também nesta frente teremos de, pelo menos, ir mais devagar. Não será bom para o crescimento económico, mas será melhor que o regresso puro e simples dos protecionismos. E pode ser uma grande oportunidade – para ver políticos a, finalmente, defenderem o comércio livre.
O Brexit e a eleição de Trump podem, se não cairmos no histerismo que por aí medra, ser uma oportunidade para encontrar melhores soluções do que as actuais. Mas essas soluções nunca passarão por acelerar o passo, pelo contrário.
Ponham lá umas pedras de gelo nos pulsos a ver se dominam os ânimos, se têm um pouco mais de humildade democrática, se baixam o tom dos insultos e se deixam de tratar todos os que pensam de outra forma como “white trash”.

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