Um "sujeito criminoso"

FRANCISCO ASSIS Público 26/05/2016

Escasseia a Mário Nogueira legitimidade moral para assumir o papel de vítima em que se quer instalar.

Confesso a minha surpresa. Já não esperava, nos dias da minha vida, ouvir um destacado militante do PCP apelidar Josef Stalin de “sujeito criminoso”. Mário Nogueira ludibriou a minha descrença. Fê-lo em resposta a um cartaz supostamente iconoclástico, da autoria moral da JSD, no qual surge retratado com as vestes do antigo líder soviético. Há no cartaz, e na reacção ao mesmo, aspectos assaz curiosos que merecem ser analisados.
Comecemos pelo cartaz. Uma organização política de juventude deve recorrer a este tipo de caricatura como forma de exprimir o seu próprio ponto de vista e denegrir uma perspectiva alheia? Não estando em causa o direito a fazê-lo, dado tratar-se do exercício da liberdade de expressão plenamente consagrada no nosso ordenamento jurídico e amplamente reconhecida no domínio das práticas sociais vigentes, a questão coloca-se num outro plano. Uma organização política tem ou não o dever de evitar o recurso a formas de linguagem de carácter notoriamente ofensivo e susceptíveis de concorrer para a radicalização desnecessária do confronto político? A meu ver, a resposta a esta pergunta é clara: tem. A JSD excedeu-se notoriamente ao recorrer à figura de Stalin para contestar as posições que têm vindo a ser assumidas pelo líder da FENPROF no debate em curso sobre o financiamento público de alguns colégios privados. Arguirão os autores morais do cartaz que se trata de uma caricatura, com o natural excesso que esta modalidade estética implica. Será verdade, mas mesmo esse argumento carece de verdadeiro fundamento no plano político. Ao que se sabe, a JSD não é um jornal satírico, uma trupe de humoristas ou um grupo de variedades. Se assim fosse não se lhe poderia censurar o gosto pela incontinência verbal manifestada no recurso a imagens próximas da blasfémia. Porém, enquanto organização política que é, deveria sentir-se obrigada a um uso mais ponderado da sua criatividade panfletária. A democracia liberal convive mal com excessos retóricos que empobrecem o confronto de ideias e acentuam dramaticamente as polarizações políticas. Quando se perde a noção de um desejável comedimento está-se a favorecer, ainda que inconscientemente, a afirmação de posições extremistas.
É claro que se poderá sempre afirmar que Mário Nogueira está a provar do seu próprio veneno. Apesar da bonomia que aparenta, e que de facto torna inverosímil qualquer tentativa de identificação da sua personalidade com o tirano soviético, o líder da FENPROF não é propriamente um menino de coro em estado de virgindade retórica. Pelo contrário, sempre se caracterizou pela adopção de uma linguagem excessiva e colocada ao serviço de um fanatismo corporativo-ideológico que só tem paralelo no comportamento dos estivadores do porto de Lisboa. Todos nos lembramos da forma como se foi referindo, ao longo do tempo, aos vários titulares da pasta da Educação, bem como das campanhas verbalmente agressivas que promoveu por todo o país. Que o diga Maria de Lurdes Rodrigues. Nisso, aliás, não se diferenciou do comportamento geral da extrema-esquerda que nos últimos anos rebaixou deliberadamente o nível da discussão política em Portugal. Basta ver como os deputados do PCP e do BE actuam no Parlamento para perceber a que ponto a degradação da linguagem constituiu uma opção política consciente.
Escasseia por isso a Mário Nogueira legitimidade moral para assumir o papel de vítima em que se quer instalar. A grosseria alarve com que ele e os seus companheiros de percurso tantas vezes trataram quem deles discordava permanece demasiado viva na memória colectiva para que agora se pudesse arvorar em alvo inocente da perfídia de alguns jovens conservadores portugueses.
O que há de verdadeiramente novo neste episódio é a forma como Mário Nogueira ousa referir-se ao “camarada” Stalin. Refere-se a ele como um “sujeito” ?  ainda por cima ”criminoso”. Ora, isto é que não estava previsto no guião e extravasará em muito as expectativas dos próprios rapazes da JSD. Nogueira rompeu com a ortodoxia comunista, ofendeu décadas de idolatria stalinista, pôs em causa a própria identidade do PCP. Um dia destes ainda o veremos a explicar a Rita Rato quem foi Soljenitsin e quão real era a existência dos gulags. Das duas, uma: ou no PCP a tradição já não é o que era ou Mário Nogueira arrisca-se a ter problemas. Permito-me até dar-lhe um conselho: não se preocupe tanto em mover um processo aos “garotos imberbes” da JSD e preocupe-se mais em preparar a defesa de um eventual processo disciplinar que o seu partido lhe venha a instaurar. A JSD cometeu um erro; já Mário Nogueira, esse sim, teve um gesto verdadeiramente iconoclástico. Involuntariamente, ele pode sair desta história como um verdadeiro herói. O primeiro dirigente comunista que não precisou de se tornar dissidente para ver em Stalin aquilo que este foi: um verdadeiro sujeito criminoso.

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