Contratos de associação, o processo da sua extinção e o bem comum

P. José Maria Brito, SJ
Observador 28/5/2016

Ignorou-se o trabalho, o conhecimento da realidade e a experiência acumulada pelas comunidades educativas em mais de 30 anos, num processo altivo e em forma de monólogo, que não considerou o bem comum
Qualquer Governo é chamado a agir em defesa do bem comum. Seguramente é essa a vontade do nosso atual Governo e daqueles que o constituem. Parece ser também essa a vontade dos que, referindo-se aos contratos de associação, usam expressões como: defesa de interesses exclusivamente privados, uso de dinheiros públicos com vista ao lucro ou afirmam que estas escolas discriminam alunos e não são representativas de uma realidade social heterogénea.
Falo dos contratos de associação a partir da realidade que conheço: Colégio da Imaculada Conceição (CAIC), em Cernache, Coimbra e o Instituto Nun’ Alvares (INA) em Santo Tirso. Estas duas escolas fazem parte da lista daquelas com que o Governo deseja terminar o contrato de associação. Conheço-as não apenas por ser jesuíta e por estas escolas pertencerem à Companhia de Jesus, mas por ter trabalhado numa delas e por ter acompanhado de perto o trabalho que cada uma delas faz em termos de intervenção social. Não quero com isto desconsiderar nenhuma outra escola, mas falar com conhecimento de causa.
O que se passa então nestas escolas? Estas escolas aceitam todos os alunos de acordo com regras do Ministério, havendo umapercentagem elevada a beneficiar de apoios socias. Nesses e noutros casos, é feito um acompanhamento das famílias que vai para além do estipulado na Ação Social Escolar. Estas escolas integram alunos institucionalizados e alunos com necessidades educativas especiais. Pontualmente, aceitam a transferência de estudantes a pedido de escolas públicas estatais devido a questões disciplinares ou dificuldades de integração. Não se nega a participação em atividades extracurriculares por razões económicas. Existe uma real colaboração com diferentes entidades na resposta às necessidades da população. Sejam elas a comissão de proteção de menores, os municípios ou uma escola primária do estado cujos alunos utilizam o refeitório da escola com contrato de associação.
Nenhum destes estabelecimentos de ensino vive desinserido da sua realidade local ou fechado ao mundo. Basta para isso pensar nos projetos de educação para o desenvolvimento e para a cidadania (crise dos refugiados; acesso à educação; comércio justo, justiça social global), no projeto de educação para a afetividade e sexualidade e no trabalho que se faz no acompanhamento e crescimento – também espiritual – dos alunos ou nos acampamentos realizados no verão.
Nada disto seria possível sem um corpo comprometido de educadores: gratuidade; preocupação de acompanhamento pessoal, de sinalizar situações de risco; dúvidas e desabafos sem hora marcada; o desejo das direções para que se vá mais longe; a insistência dos educadores de ensino especial para que se integre cada vez melhor e mais plenamente; visitas domiciliárias de técnicos de Serviço Social.
Mas uma escola vive para os seus alunos. E são tantos e tão marcados os que por lá vão passando. Não só pelas aulas, mas pelos corredores, pelas conversas, por tantas atividades próprias de um projeto educativo claro e que se assume como de Igreja, sem deixar de respeitar a liberdade de cada um. Considero os frutos em tantas vidas e vejo cidadãos ativos, antigos alunos que voltam gratuitamente à sua escola para acompanhar os alunos mais novos e assim participar na missão de educar e fazer crescer, vejo vidastransformadas para melhor, pessoas capazes de marcar os lugares em que trabalham com valores de justiça e retidão.
Há muito bem, bem feito. Não esqueço também aquilo em que se falhou e em que podia ter ido mais longe. Mas por muito que me esforce, uma, duas, mil vezes, não encontro a busca do lucro ou a defesa de interesses privados. Não encontro uma Igreja desencarnada e virada sobre o umbigo. Encontro serviço ao bem comum, participação na construção das comunidades locais em que estas escolas se inserem, um interesse genuíno em participar na construção da cidade.
E o modo como se conduziu o processo da extinção dos contratos de associação respeita o bem comum?
1 Altera-se sem aviso e com o final do ano letivo já próximo um acordo para três anos, menos de um ano depois da sua assinatura.
2 Evoca-se a ilegalidade de tal acordo e coloca-se também em causa o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo (que considera as escolas de contrato de associação parte da rede pública, não supletivas) aprovado em 2013 sem que ninguém tivesse requerido a verificação da sua constitucionalidade. Diante desta constatação, não se chama os parceiros para conversar e procurar um modo equilibrado de resolver aquilo que se considera um problema. Corta-se a direito, estigmatizando escolas que prestam serviço público e fomentando a divisão de alunos e educadores em função da escola que frequentam.
3 Evoca-se como argumento tardio a questão dos custos já analisada pelo Tribunal de Contas. Diante da surpresa e da dificuldade de justificação, recusa-se na Assembleia da República que se faça um estudo independente sobre o assunto.
4 Contacta-se as escolas públicas do estado. Não se contacta as escolas em contrato de associação e decidem-se cortes brutais. Anuncia-se pela comunicação social a concretização desses cortes, para lá do horário de expediente, sem falar frontalmente com as escolas afetadas.
5 Promete-se aceitar alguns dos despedidos sem cuidar que tal não é possível.
6 Promete-se aceitar que escolas de Ensino Básico e Secundário se transformem em estabelecimento de Ensino Pré-escolar, Ensino Profissional ou de Ensino Artístico. Como se fosse possível transformar um professor de Matemática em educador de infância, converter um professor de Geografia em professor de expressão corporal ou, como se fosse possível, depois de todas as indemnizações pagas e da instabilidade criada atrair professores e reconverter do dia para a noite um projeto educativo.
7 Não se escuta autarcas de diferentes partidos e os seus alertas.
8 Não se escuta apelos com conteúdos distintos mas todos pedindo bom senso: Marçal Grilo; Joaquim Azevedo; Vera Jardim; Maria de Lurdes Rodrigues.
9 Apresenta-se um estudo baseado no Google Maps. Uma ferramenta legítima mas manifestamente insuficiente para compreender as realidades em que estas escolas se inserem. Absolutamente incapaz de avaliar o seu impacto no tecido social e económico. Não se estuda o funcionamento dos transportes, o impacto real do apoio social que estas escolas dão, o desemprego a que famílias inteiras podem ser condenadas.
Não faço juízos sobre pessoas. Faço um juízo político sobre o processo. Ainda que quisesse acabar com os contratos de associação, o caminho escolhido foi injusto, não atendeu a realidades concretas, aos interesses das famílias e das comunidades locais. O Governo ignorou o trabalho, o conhecimento da realidade e a experiência acumulada por estas comunidades educativas ao longo de mais de trinta anos. O processo foi altivo e em forma de monólogo, pela falta de frontalidade e de verdadeiro diálogo.
Acredito que é possível defender com sinceridade o que se julga ser o bem comum partindo de perspetivas distintas. Considero que manter contratos de associação que servem as comunidades locais do modo que o fazem as escolas que conheço é promover o bem comum. Para o Governo não é assim.
Mas, divergências à parte, mediante o modo como o processo foi conduzido, não me conseguem convencer que é o Governo que está do lado do bem comum. A Justiça só se pode defender de um modo justo, com processos claros que envolvam a participação de todos. Todo este processo acentuou divisões. Só o Governo pode inverter esta situação, suspender a decisão e promover serenamente o diálogo tendo em vista o bem comum.
Nota: Este texto foi adaptado a partir de uma publicação feita no Facebook.

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