A escola do crime
Alberto Gonçalves
DN20160529
Por falta de vocação, não tenho filhos. Se tivesse filhos, gostaria que estudassem em países menos carnavalescos. Se tivesse filhos e não tivesse meios para pô-los lá fora, em princípio ensinava-os em casa. Se não tivesse vagar para ensiná-los, se calhar deixava-os à solta, ranhosos e ilegais, que quase tudo é preferível a submeter crianças à aquisição de "valências" e à lavagem cerebral que aqui passa frequentemente por ensino público - aliás o único que conheço, da primeira classe à tese de licenciatura.
Resultado? Descontada a esforçada dona Julieta da "primária" e talvez meia dúzia de docentes do liceu, nenhum professor me "transmitiu" grande coisa, excepto a impressão de que por ali não ia longe, ou a importância do autodidactismo. E agora é de certeza pior: principalmente na área das "humanidades" (nas ciências "duras" os charlatães penetram com maior dificuldade, pelo que certos bioquímicos se mudam para a política), um mocinho é capaz de concluir a "secundária" convencido de que Mia Couto é um escritor, de que a globalização é responsável pela pobreza na Terra e de que os graffiti são uma expressão artística.
Há alternativas? Há o ensino particular propriamente dito, presumivelmente mais competente e mais caro. E há as escolas privadas com "contratos de associação". Ou havia, até ao momento em que o senhor ministro do ramo descobriu uma piscina olímpica num colégio na Vila da Feira e resolveu acabar com a brincadeira. Num instante, hordas de indivíduos apaixonados pelo ensino público e que inscrevem a descendência no privado levantaram-se para aplaudir. De seguida, a título de verdades incontestáveis, desataram a repetir uma série de incontestáveis aldrabices: ao financiar as escolas privadas com "contratos de associação", o Estado prejudica as escolas públicas; as escolas privadas com "contratos de associação" ficam caríssimas ao contribuinte por comparação com o ensino gratuito; as escolas privadas com "contratos de associação" exibem sinais exteriores de riqueza, ao passo que as escolas públicas se limitam ao essencial; as escolas privadas com "contratos de associação" são para ricos e egoístas em geral, enquanto as escolas públicas são para os pobres e as pessoas com consciência social; ao contrário da iniciativa privada, cega pela vertigem do lucro, o Estado vela pelo bem comum; etc.
Uma pessoa ouve estas erudições e pergunta-se se os respectivos autores as cometem por idiotia terminal ou má-fé. Na primeira hipótese, convinha averiguar qual o tipo de ensino que frequentaram, de maneira a encerrá-lo com urgência. Na segunda, convinha determinar clinicamente o perigo de semelhantes sociopatas para a comunidade. Em qualquer dos casos, até dói ter de lembrar duas ou três evidências.
Desde logo, o ensino gratuito custa um dinheirão, pago à força pelo contribuinte, que não só não consegue decidir o destino dos seus impostos como, de brinde, está proibido de decidir o destino da sua prole (o "quem quer que pague" é de facto o "paga quem não quer"). Depois, abundam por aí provas de que, para o Estado, o gasto por aluno nas escolas privadas em causa é inferior ao de um aluno nas escolas públicas. Do mesmo modo, o luxo repugnante do colégio que "atraiu a atenção" do intrépido ministro traduz-se na qualidade das instalações (salas de informática e multimédia, laboratórios, campo de squash e a tal piscina), construídas ao longo de 25 anos mediante financiamentos similares aos de um liceu comum - a atenção de governantes sem distúrbios hormonais teria sido atraída pelos sinais exteriores de desleixo dos estabelecimentos estatais: onde foram parar as verbas? De resto, se somadas, as despesas com os "contratos de associação" arrancam decisivos 0,11% do orçamento do ME. Por fim, a ideia de um Estado quimicamente puro, imune a grupos de pressão, chantagem e cobiça, não merece comentários.
No fundo, a questão deveria ser simples. Se cabe ao Estado alguma intervenção no assunto - matéria também discutível - será a de facilitar a escolha das famílias, aquelas que não conseguem chegar às escolas desejadas sem ajuda. É absurdo, além de dispendioso, que se patrocinem escolas privadas e públicas em vez de se patrocinar os cidadãos. Sucede que a preocupação dos devotos da escola pública não é, obviamente, o dinheiro. Nem a educação das criancinhas. Nem a justiça, a igualdade, a moral e demais conceitos assim impecáveis.
Materialmente, há que consagrar o poder dos sindicatos no ensino, que há muito se sobrepõe à tutela e hoje dispensa-a por completo. Ideologicamente, é importante controlar a ascensão social, e domesticar as almas de modo a subjugá-las às demências vigentes. Sobretudo importa arrasar qualquer vestígio de respeito pela liberdade alheia, e mostrar quem manda. Nisto, manda um "professor" com estágio no despotismo e carreira no ressentimento. Em sectores diferentes do país inteiro, mandam ou candidatam-se a mandar tiranetes diferentes, todos juntinhos num projecto totalitário que o Dr. Costa acha "claro, coerente e estável". E o pior é que tem razão. O melhor é que não tenho filhos: o crime em curso não carece de novas vítimas.
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