«Argumento religioso»: e então?

PE. ALEXANDRE PALMA
Voz da Verdade, 2016.05.01

Já se percebeu que o debate em torno da eutanásia veio e está aí para ficar. Já se percebeu que, após um intenso ciclo eleitoral, o espaço público será ocupado por esta questão. Já se percebeu que o argumentário e o vocabulário de quantos pugnam por uma «despenalização da morte assistida» foi previamente pensado e medido, ponderado e seleccionado em vista dos seus fins. Este argumentário será agora intensamente repetido, tal como prescrevem as melhores técnicas da comunicação moderna e mediatizada. Não vejo nisto nada de extraordinário. Nada mais natural numa sociedade plural como a nossa. Algo de muito semelhante farão (ou já fazem) quantos contestam a bondade social ou a validade ética da eutanásia. Muito legitimamente o fazem.
Há, contudo, um elemento desse argumentário que me despertou particular atenção. É sobre ele (e apenas sobre ele) que me quero aqui concentrar. Ora dito en passant ora assumido por escrito, verifico a intenção de encostar toda a oposição à eutanásia a uma visão religiosa da vida, julgando assim deslegitimá-la no espaço público. Pela amostra de debate que por aí vai, intuo que este tópico da retórica pró-eutanásia será repetido vezes e vezes sem conta. Diz-se que a oposição à eutanásia assenta num entendimento religioso da vida (percebida como dom de Deus) e que o Estado, em virtude da sua laicidade, não se pode deixar condicionar por uma tal concepção. Eis o que denunciam como «argumento religioso» e que crêem social e politicamente ilegítimo.
Verifico, em paralelo, que muitos dos que se comprometem publicamente em contestar a eutanásia procuram sacudir de si esse «argumento religioso». Com boas razões o fazem, reconheça-se. Porque efectivamente se trata de uma questão humana, não religiosa. Porque não faltam ateus ou agnósticos que se opõem à eutanásia. Procuram assim legitimar o seu discurso, recusando justificadamente essa guetização social e política que lhes querem impor. Esse gesto tem, contudo, um alto preço: a tácita aceitação de que o «argumento religioso» não tem direito de cidadania numa sociedade laica e plural. É precisamente aqui que bate o ponto!
Neste tópico do debate está em causa o papel da religião nas sociedades modernas. A exclusão do «argumento religioso» é sintoma de uma sociedade ainda imatura na forma de lidar com a sua diversidade interna. É sintoma de uma sociedade ainda incompetente na forma de olhar o seu próprio elemento religioso como uma força potencialmente positiva. Temem alguns que o religioso venha a dominar o espaço público. Temem de forma completamente anacrónica. Os tempos não voltam atrás. Nem sequer se trata de acolher sem mais uma qualquer fundamentação religiosa deste ou doutros temas. Trata-se somente de reconhecer que isso também existe no seio das nossas sociedades e, portanto, de reconhecer-lhe direito de cidadania. O espaço público é hoje, mais que nunca, um campo de interacção de forças várias. O elemento religioso é apenas mais uma dessas forças. Ele tem de saber viver descomplexadamente com este seu «novo» estatuto. Mas as sociedades têm também de saber conviver descomplexadamente com o religioso que as constitui. A subtracção do religioso do espaço público não nos oferece mais espaço de liberdade. Pelo contrário, apenas o reduz.

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