A vaca, o marxismo e o porquinho mealheiro
Paulo Tunhas | Observador | 2016.05.26
Gente avisada, como Teodora Cardoso, já anda a falar seriamente da possibilidade de um novo resgate. O “tempo novo”, esta Primavera de que falam, pode bem ser um tempo que nos faça voltar para trás.
Christopher Hitchens contou a história uma vez na Atlantic, uma história que lhe havia sido narrada por um velho jornalista que tinha organizado – há muito, muito tempo, como se adivinhará – um programa de rádio para a BBC. O programa tratava de gente célebre que havia emigrado para Inglaterra. E, procurando alguém que tivesse conhecido pessoalmente Marx, o jornalista acabara por descobrir um velhíssimo funcionário da sala de leitura do British Museum, ao qual fez uma descrição física detalhada do personagem. De súbito, uma luz. “O sr. Marx, claro. Deu-nos uma carga de trabalho, se deu, com todos os pedidos de livros e jornais… E, de um dia para o outro, deixou de aparecer. E sabe uma coisa engraçada?” Pausa cheia de significado. “Nunca mais ninguém ouviu falar dele.”
A situação do funcionário do British Museum, na sua gloriosa indiferença ao mundo exterior, tornou-se, à sua maneira, a situação comum. Nunca mais ninguém ouviu falar dele. Salvo para alguns intelectuais mediáticos como Zizek ou Alain Badiou, possuídos pelo “desejo de comunismo” ou pela “ideia de comunismo”, essa ilusão transcendental da razão política do século XX, o que sobra do marxismo (com inevitável injustiça) é uma espécie de baixo-latim de legionários derrotados, sofrendo da insolação provocada pelos habituais episódios revolucionários latino-americanos, hoje em dia sublimemente representados pelo genial Camarada Maduro. Ou então, mas aí Marx não precisa já sequer de ser lembrado, a tradução da “luta de classes” no puro e simples ressentimento como “motor da história”, algo em que o nosso ministro da Educação se parece ter especializado. Isso e uma certa convicção de que a história tem um sentido, na dupla acepção de possuir uma direcção determinada e uma inteligibilidade plena.
Duvido que António Costa ande a ler Marx por estes dias, e ignoro até se alguma vez o leu. Mas a sua já célebre, e justamente célebre, oferta de uma vaca voadora à ministra da Modernização Administrativa subentende essa espécie de baixo-latim que nos faz sentir no lado certo da história, uma mania de que a esquerda sofre em geral. Faça-se o que se fizer, a posição de base é à partida justa, e, portanto, a acção há-de ser boa, por mais extravagante que seja a convicção que engendra. No caso, a da existência de vacas voadoras. Daí o desprezo pelas consequências empíricas das acções. O que é preciso é fazer experiências. Nada é impossível. A coisa vem de longe, é claro, e já teve consequências bem mais danosas do que agora. Karl Jaspers narrou algures uma discussão tempestuosa num café de Viena entre Max Weber e Schumpeter em torno da revolução russa. Weber, que acreditava que a revolução conduziria a uma miséria humana sem equivalente e a uma terrível catástrofe, não apreciava que se falasse dela como se de uma perfeita experiência de laboratório se tratasse. Houve vacas voadoras bem piores do que a de António Costa.
A facilidade de acreditar em vacas voadoras pode, de facto, conduzir a catástrofes. Enormes ou mais pequenas. Numa conferência feita em 1919, no final da sua vida e nos primeiros tempos da revolução russa, Weber, sempre ele, avisou: “Não é o florir do Verão que nos espera, mas, ao contrário, uma noite polar, glaciar, sombria e rude. Com efeito, aí onde nada existe, não é unicamente o imperador, mas também o proletário, que perdeu os seus direitos. E, quando esta noite lentamente se dissipar, quantos viverão ainda, de todos aqueles que viveram a actual Primavera, de rosto tão opulento?”. A vaquinha voadora de António Costa não nos vai certamente mergulhar numa “noite polar, glacial, sombria e rude”, mas que nos vai trazer problemas sérios, vai. Gente avisada, como Teodora Cardoso, já anda por aí a falar seriamente da possibilidade de um próximo resgate. O “tempo novo”, esta linda Primavera de que falam, pode bem ser um tempo que nos faça voltar para trás.
António Costa imaginou existir uma capa de um disco dos Pink Floyd em que uma vaca voava. Como se sabe, não é assim. Há uma capa de um disco em que uma vaca se encontra na posição que legitimamente se espera de uma vaca normal, e há outra capa onde aparece um animal voador, que não é uma vaca, mas sim um porco. A confusão de António Costa é interessante. Porque os porcos nos podiam fazer lembrar porquinhos mealheiros, e fomentar o desenvolvimento de reflexões próximas das da chamada “direita radical”, para utilizar essa expressão que está na moda, até porque apresenta todos os sinais de pertencer à categoria daquilo que alguém apelidou de “agentes verbais cognitivamente infecciosos”. Agora uma vaca voadora suscita pensamentos de natureza completamente diferente. As vacas, como se sabe, dão leite. E vacas voadoras despejariam leite pelo país inteiro. Mais. Vacas voadoras socialistas despejariam certamente, além do leite, dinheiro sobre a cabeça de cada português. Que melhor emblema para o “tempo novo”? Que mais perfeita imagem das virtudes indisputáveis do socialismo?
Intencional ou não intencional, a confusão de Costa percebe-se. Estando do lado certo da história, António Costa pode-se permitir estas fantasias, sem sequer precisar de qualquer marxismo explícito para pôr a sua imaginação a funcionar. O baixo-latim que lhe sussurram de um lado e de outro basta. O problema é que, face ao que se avizinha, nos dava mesmo mais jeito um bom número de porquinhos mealheiros. Seria menos entusiasmante e, literalmente, menos elevado, mas, estando como estamos, dava mais jeito. Mas vá lá a gente explicar isto a quem está do lado certo da história…
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