A modernidade destrutiva e as crianças-objecto

Económico | 19 Mai 2016 Raul de Almeida

Há no mundo ocidental uma revolução em curso, um golpe social; uma perseguição ideológica que visa acantonar num rótulo de conservadorismo radical ou preconceito todos os que não seguem a cartilha dos revolucionários da modernidade destrutiva.
Apoderou-se da sociedade portuguesa um novo e perigoso conceito, o da modernidade destrutiva. De repente, há gente a mais a pensar que a modernidade assenta na criação de novos paradigmas que destruam os paradigmas anteriores. A modernidade desta gente não é, portanto, evolução; é ruptura, ou fractura, como gostam de lhe chamar. Voltamos à inspiração jacobina da Revolução Francesa, ao princípio da permanente desconstrução social, de não deixar pedra sobre pedra.
Em Portugal esta agenda tem sido cumprida com zelo, previsibilidade e surpreendente sucesso. O facto de vivermos num estado de emergência desde 2011, e com notórias dificuldades desde sempre, explica que a maior parte da população se concentre na satisfação das suas necessidades mais prementes, deixando aos políticos e aos militantes as grandes causas estruturantes do modelo social do Estado; é a opção do urgente sobre o importante. Compreende-se assim que o povo não saia à rua na dimensão e força que têm sido vistas noutros países.
Sim, há no mundo ocidental uma revolução em curso, um golpe social, para sermos mais precisos. Com o maniqueísmo característico, e o favor de muita da comunicação social e gente dita bem pensante, cria-se uma perseguição ideológica que visa acantonar num rótulo de anacronismo, conservadorismo radical ou preconceito, todos aqueles que não seguem a cartilha dos revolucionários da modernidade destrutiva. Enquanto isto, outras civilizações revelam a sua força precisamente com base numa identidade cultural estável e forte.
Enquanto esta onda destrutiva grassa, o Ocidente, e em particular a Europa modernista, perde todos os dias peso no quadro do equilíbrio de forças internacional. Por cá, começámos com a liberalização do aborto, derrotada pelo povo na primeira volta, e consentida quando se percebeu que a esquerda e outros militantes da causa promoveriam quantos referendos fossem necessários até conseguirem o que queriam. Seguiu-se a utilização despudorada das pessoas com orientação sexual diferente da maioria para impor no Parlamento o casamento gay, não como meio de prover a todos a justa igualdade de direitos e deveres, mas como modo de atacar e fragilizar o modelo tradicional de família.
Como previsto, chegou-se rapidamente à adopção gay, com a bandeira perversa da igualdade do direito dos adultos a adoptar, esquecendo um conceito tão fulcral como o superior interesse da criança, invertendo princípios fundamentais, negando o direito à criança a ser adoptada em detrimento de um suposto direito dos adultos a adoptar, sejam estes hetero ou homossexuais. Cumprida a primeira parte da agenda, não tardou a estar na ordem do dia a eutanásia e as barrigas de aluguer.
Já muito foi dito e escrito sobre as barrigas de aluguer. É inescapável a ideia de estarmos a avançar num processo de consequências humanas imprevisíveis, de puro experimentalismo social. O Estado sanciona a cedência do corpo e a comercialização da criança, não há floreado verbal que possa iludir esta questão de princípio. Se por um lado vale o tristemente célebre “na minha barriga mando eu”, por outro estamos a conceber crianças de modo artificial ignorando os laços e consequências que essa excentricidade concepcional possam reflectir na mesma – sem ser tida nem achada. É a consagração do tempo das crianças-objecto.
Aqueles que acham que a criança pode ser morta na barriga da mãe se não for por qualquer motivo conveniente ou cómodo garantir-lhe o direito a nascer e a ter uma vida com dignidade, são exactamente os mesmos que querem fazer nascer crianças que não estavam destinadas a nascer para satisfazer o projecto de vida de adultos, utilizando a extensão e exaustão médica e científica equivalente à que põem em causa ao defender a eutanásia. Promovem a possibilidade de morte onde há vida, promovem a possibilidade de vida à força onde a natureza não a prevê.
São também estes os mesmos que vêem as crianças como objecto de adopção no cumprimento de desejos pessoais dos adultos sem tempo ou vontade para analisar o melhor interesse da criança. São estes que, assim vistos, parecem um poço de insanáveis contradições, e são-no na forma, mas progridem com sucesso na sua agenda de destruição do modelo social que conhecemos e tem servido o mundo ocidental.
Sim, são os filhos que têm o direito a ter pais, não os pais que têm o direito a ter filhos como projecto de vida ou realização pessoal. Sim, existe infertilidade sob várias formas, mas existe algo muito esquecido ou desvalorizado que se chama fecundidade, e há muitas maneiras de ter uma vida plena e fecunda sem ser obrigatoriamente através da maternidade ou paternidade.
Sim, os adultos têm de lidar com frustrações ao longo da vida, faz parte do percurso. Usar terceiros materialmente para sublimar essas contrariedades não parece humanamente aceitável. Sim, por mais que se queira lutar em contrário há mesmo uma ordem natural das coisas, onde a ciência deve actuar positivamente, onde a sociedade deve intervir construtivamente. Sim, temos todos muitas pequenas urgências a consumir-nos o dia-a-dia, mas convém dedicar tempo ao que, não parecendo urgente, é profundamente importante. Antes que seja tarde demais.

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