Salvar o Liceu Alexandre Herculano

Também foi o meu liceu! Principal razão pela qual escolhi este artigo para o Povo. Traz recordações pessoais que, não sendo totalmente coincidentes - o Pacheco Pereira passou lá seis anos antes e em letras - são igualmente intensas.
A minha alínea era a f (ciências e Engenharias) e, por isso, apenas reconheço alguns nomes: o do reitor, Martinho Vaz Pires de o do professor de Canto Coral, Godofredo.
O estado do edifício diz eloquentemente da difícil gestão centralizada dos edifícios públicos. Um aspecto a ter em conta nesta difícil conversa sobre a liberdade de educação.
Pedro Aguiar Pinto

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JOSÉ PACHECO PEREIRA Público 28/05/2016
As casas que transportam memória não podem ser perdidas sem nos empobrecer a todos.

Circula na Internet uma petição com título de “Não deixem cair o Alexandre!”. Tem um ponto de exclamação no fim, e bem merecido é. O Liceu Alexandre Herculano foi o “meu” Liceu e como muitos outros que por lá passaram, foi ali que fomos “feitos”. O conhecimento do estado lamentável em que se encontra, com tectos a cair, ratos a passear por todo o lado, chuva nas salas e uma deterioração acentuada de todo o edifício, exige urgência e muita urgência. Por isso, esta é a minha maneira de assinar a petição.
O Liceu Alexandre Herculano é um edifício classificado, obra de um dos arquitectos mais importantes da época, Marques da Silva, e vai fazer 100 anos. Foi pensado como um liceu modelo, com fachadas com dísticos, inscrições, e molduras em pedra, colunas no interior, grandes corredores e janelas e tudo aquilo que não era comum encontrar a não ser nos grandes liceus “centrais”. Tinha vários recreios, piscina, auditórios, laboratórios, um museu, biblioteca, ginásios e um refeitório. Foi tudo feito com granito, mármore, madeiras, cada detalhe estudado e realizado, seja a ombreira de uma porta, seja um corrimão, e tinha enormes espaços e era banhado por toda a luz nas suas enormes janelas nas salas de aula e nos corredores. Foi feito para durar, mas, como todas as coisas, ameaça não durar. Foi caro de fazer, caro de manter e hoje, após anos de incúria, ainda mais caro de recuperar.
Ainda o conheci no seu esplendor, já nos anos escuros da ditadura. O liceu mantinha a glória dos seus primeiros anos. As aulas de Química e Física eram dadas nos laboratórios onde os bicos de Bunsen estavam implantados nas bancadas de lousa e mármore, para suportarem fogos acidentais e derrames de materiais perigosos. Nos grandes armários dos laboratórios havia instrumentos científicos e frascos com ácidos, sódio e potássio, e outros elementos mais complicados de pôr ao ar e à luz. Tinha um museu com uma série de animais empalhados e alguns em formol, mas, enquanto os laboratórios funcionavam, o museu era uma mera exposição nalgumas salas a que não era comum aceder. Havia uma biblioteca, mas como quase todas as bibliotecas da época estava bastante morta. Não era fácil pedir livros e muito menos saber o que lá estava. Era uma sala com o ambiente que se considerada normal numa biblioteca da época, escura, “encadernada” em encadernações, com os livros fechados em armários. Apenas quando um professor de Inglês deu algumas aulas na biblioteca para usar o gravador de fita que lá estava se usou a biblioteca, na verdade como paisagem.
O liceu era cuidadosamente patrulhado pelos contínuos e os espaços interditos aos alunos eram muitos. Havia corredores em que só se entrava quando qualquer coisa corria muito mal. Esses espaços incluíam a secretaria, a sala dos professores e acima de tudo o proibidíssimo espaço da reitoria onde estava o gabinete do reitor e a sua casa, visto que habitava no próprio liceu. Aí os veludos e madeiras trabalhadas, sinal da pompa e autoridade, dominavam um gabinete onde várias vezes tive de ir para ouvir as admoestações do reitor contra o conteúdo do jornal do liceu, o Prelúdio, que dirigi. Aí ele me explicou que não se podia falar de Fernando Lopes Graça, nem publicar poemas sem pontuação, nem reproduzir um quadro de Picasso do período azul em que um rapaz nu segurava um cavalo (perguntei-lhe uma vez se era porque o cavalo estava nu), porque o jornal era também vendido no Rainha, o liceu das raparigas ao lado. O Alexandre era um sólido bastião masculino e fornecia um contingente de voyeurs, que esperavam em frente da saída do Rainha, que só tinha raparigas, meninas, mulheres. Não por acaso era um ao lado do outro, mas o Rainha era novo e o Alexandre já vetusto.
Como liceu com todos os pergaminhos na cidade e que competia apenas com o Liceu D. Manuel II, no PREC  crismado de Amílcar Cabral e hoje Rodrigues de Freitas, os professores eram altamente prestigiados e alguns muito competentes, outros menos. Mas de um modo geral eram characters, personagens temidos e amados, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Entre os meus professores tive o dr. Agostinho Gomes — os nomes não são concebíveis sem o “dr.” —, que era uma coisa rara, porque era “escritor”, tinha livros publicados e oferecia aos melhores alunos os seus livros. Hoje está completamente esquecido. Havia o dr. Cruz Malpique, uma personagem muito especial, professor de Filosofia, que estava no liceu desde 1948. Não sei bem quantos livros escreveu, mas deve ultrapassar a centena de títulos, e escrevia um novo livro no verso das provas do anterior. Encontrava-o muitas vezes na Biblioteca do Porto, a trabalhar com mangas-de-alpaca para não estragar a camisa ou o casaco. O dr. Malpique era um impressionista, não sabia muito de filosofia, mas transmitia o gosto pela filosofia e pelo pensar e isso é que caracteriza um professor. Havia o terror dos terrores o “Rapa-côdeas”, o dr. Gaspar da Costa, meu professor de Latim, e que era universalmente temido pelo modo destemperado com que caía em cima de qualquer infeliz que não soubesse as declinações. Havia igualmente algumas personagens pícaras, como o professor Godofredo, que dava aulas de Canto Coral, e era completamente incapaz de manter a disciplina nas aulas. Devo-lhe ter conhecido pela primeira vez, a vez que mais conta, o francês falado no Québec, porque ele via-se aflito em fazer cantar gente que tinha aprendido francês da metrópole, o sotaque do francês do Canadá. E havia o reitor, Martinho Vaz Pires, professor de Alemão, autor da gramática canónica da língua, dirigente da União Nacional e da Mocidade Portuguesa, antigo deputado à Assembleia Nacional. Foi ele que me disse que o jornal não podia publicar poemas sem pontuação nem maiúsculas, porque isso era obra de comunistas. Demorei anos até perceber que o reitor, que nos seus anos de formação visitara a Alemanha nazi, estava a falar da Bauhaus e da sua tipografia, considerada “degenerada” pelos nazis.
O reitor era da “situação”, mas muitos dos professores que me marcaram eram da “oposição”, gente que se relacionava com Namora e Ferreira de Castro e que convivia com a elite literária do neo-realismo e tinha prestígio na sua função de professores, entre outras coisas porque eram professores do Alexandre. As paredes do Alexandre Herculano são o local físico onde ainda habitam e aos seus tectos a cair pertencem a todas estas memórias. Não pertencem aos ratos, que esses estavam no laboratório, digamos que na forma de “não-ratos”.
Mas eu não pretendo salvar o Alexandre por causa das minhas memórias, nem de qualquer nostalgia, mas porque o liceu merece-o por si, pela sua qualidade edificada e pelo papel que teve na vida do Porto e pode tornar a ter. Nele se inclui ter deixado “memórias”, quase todas elas fortes, em por quem lá passou. Não é pequena coisa neste mundo demasiado esquecido e que faz do esquecimento um programa cultural, social e político. As casas que transportam memória ou memórias, e nelas a história interior de muita gente, não podem ser perdidas sem nos empobrecer a todos. 

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