Acordar mal

Luciano Amaral, Correio da manhã, 09.05.2016

O problema principal do acordo ortográfico é ser um objecto desnecessário.
É curioso que a posição política mais válida do novo Presidente da República tenha sido até agora aquela em que largou o mantra do consenso: sobre o acordo ortográfico, o Presidente, mesmo não tendo sido muito afirmativo, reabriu a questão, quando afirmou que o facto de Angola e Moçambique não o terem ratificado abria uma oportunidade para "repensar a matéria". Já se disse quase tudo sobre "a matéria", mas vale a pena regressar a alguns pontos. O problema principal do acordo é o de ser um objecto desnecessário. Antes dele, a escrita do português nos vários países que o têm como língua era praticamente igual, excepto por algumas diferenças de que nunca ninguém se queixou e eram tidas por exemplos engraçados de cor local. Depois dele, a escrita aproximou-se entre os países mas só marginalmente: antes, a semelhança de palavras entre Portugal e o Brasil era de 96%; depois, passou a ser de 98%. E este é um segundo problema do acordo: é que, de facto, não unifica e, mais, confunde. As diferenças eram mínimas e mínimas continuam, mas abriu-se a porta a um sem-número de confusões (duplas grafias, palavras que eram iguais nos vários países e agora são diferentes ou verdadeiros absurdos vocabulares). A grande diferença entre os países não está na escrita mas no vocabulário, isto é, nas palavras que se escrevem da mesma maneira mas significam coisas diferentes. Onde chegamos a um terceiro ponto. Com este acordo, Portugal continua na senda inaugurada em 1911 de substituir a escrita "etimológica" pela "fonética" (peço desculpa pelo jargão). O efeito é afastar ainda mais o português das grande línguas europeias (nas quais se continua a escrever "pharmacy" ou "photographie"). A língua mais poderosa do mundo, o inglês, assenta no princípio contrário e o seu único acordo é simples: cada país escreve como quer. Devia ser esse o nosso acordo também.

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