Instituições sem história
Isabel Soares
Observador 21/5/2016, 7:58
Cada instituição, como cada indivíduo, deve construir uma história própria. Para isso precisa de condições, de espaço, de autonomia, tudo o que está ausente do monolitismo da nossa escola pública.
Porque é que a escola pública compara mal com a escola privada? A resposta é simples: porque o ambiente ecológico da escola pública é completamente inadequado para o desenvolvimento harmonioso de qualquer instituição. A organização do ensino público em Portugal permanece profundamente impregnada e influenciada por princípios positivistas e marxistas que paradoxalmente têm sido aceites mesmo por muita gente que estruturalmente é completamente alheia a estas filosofias. O nosso sistema de ensino público básico e secundário é uma engrenagem burocrática ao estilo soviético.
É uma ideia consensual que as instituições de uma sociedade devem ser em princípio sistemas evolutivos, adaptativos, e não sistemas estáticos, rígidos. Quero com isto dizer que, em termos metafóricos, uma instituição é melhor representada por um organismo vivo do que por uma máquina. Uma máquina, ou, pelo menos, uma máquina no sentido clássico, é um conjunto de partes estáticas, fixas, que não aprendem nem evoluem ao interagirem entre si. Uma máquina faz aquilo para que foi programada desde o início, e a única evolução que sofre é apenas no sentido do desgaste. Um organismo é um todo integrado constituído por partes interdependentes que vão aprendendo e evoluindo umas com as outras, ao interagirem entre si, fazendo com que o todo seja diferente e mais do que a soma das partes. Aquilo que melhor define um organismo não são as partes que o constituem, mas o tipo e a qualidade das relações e interacções que se estabelecem entre elas, isto é, a sua dinâmica intrínseca. Um organismo auto-organiza-se, auto-renova-se, evolui no sentido da complexificação, desenvolve-se de forma não linear ao longo do tempo. É dotado de plasticidade e maleabilidade. Em resumo, um organismo não é apenas um somatório mecânico de partes com um comportamento fixado desde o início da sua existência.
Também uma instituição, se tiver condições adequadas, deve tender naturalmente para a auto-renovação, a auto-organização, a auto-estratificação, levando-a a adquirir novas propriedades e capacidades. É este processo que torna uma instituição um corpo vivo numa sociedade. Quando isto não acontece, uma instituição torna-se anquilosada, mais semelhante a uma “máquina” que cumpre uma determinada função de forma rotineira, estagnada, burocratizada, sem qualquer esforço de inovação, e que ao longo do tempo só sofre desgaste.
Assim como um ser vivo necessita de uma ecologia adequada para o seu pleno desenvolvimento, o mesmo acontece com as instituições. E aqui entra o papel do governo e da cultura de uma sociedade que podem ser mais ou menos favoráveis ao desenvolvimento de instituições de qualidade. Não é, por exemplo, uma ecologia adequada para o desenvolvimento de instituições de ensino público de qualidade (refiro-me aqui às escolas do ensino básico e secundário) que a distribuição dos professores seja feita de forma centralizada através do Ministério. Não há verdadeiras instituições com processos centralizados de colocação de pessoal. Isso mostra como as escolas ainda são vistas pelo Estado como “máquinas” ao estilo soviético para cumprir determinada função. Daí que os professores possam ser colocados de forma avulsa, um a um, como se fossem peças de uma qualquer engrenagem mecânica. Mostra também que não há preocupação com inovação, evolução, diferenciação, construção de uma trajectória coerente e específica – uma “história” – ao nível da cada escola, o que só pode emergir através da constituição autónoma, local, de equipas bem integradas. Esta forma de colocação de professores não pode deixar de criar instituições com um tecido interno atomizado, com uma dinâmica intrínseca em muitos casos disfuncional, em que o todo acaba, muitas vezes, por ser menos que a soma das partes.
O mesmo se aplica, em parte, pelo menos, ao sistema de saúde público, embora o monolitismo aqui seja menor. Nos meus cerca de 40 anos de trabalho em hospitais públicos, disse várias vezes em voz alta aos meus colaboradores que a nossa maneira de funcionar era “working alone together”. Uma instituição em que reina este sistema não evolui, não aprende enquanto instituição. Como tal, quem nela trabalha não tem grande benefício para a sua formação em estar integrada num colectivo, o que leva a que fique desmotivado e desinteressado. Estas “máquinas” institucionais mantêm-se em funcionamento, mas estão longe de atingir o patamar que as potencialidades das pessoas que nelas trabalham permitiria com outro tipo de dinâmica interna, o que leva a um enorme desperdício de talento e recursos humanos.
Cada instituição, como cada indivíduo, deve construir uma história própria. Para isso precisa de condições, de espaço, que lhe permitam gerar uma dinâmica intrínseca específica, única, bem adaptada às condições do local onde se insere. Uma dessas condições é, pelo menos, um grau significativo de autonomia. Muitas das nossas instituições públicas não criam uma história digna desse nome. Vivem numa apagada e vil tristeza.
Fala-se muito na necessidade de inovação. Mas a inovação a todos os níveis está profundamente ligada à existência de instituições de qualidade. E a própria evolução das instituições pode ser uma forma importante de inovação. Para além disso, as instituições através do seu funcionamento, educam, para o bem ou para o mal. Em muitos casos, em Portugal, as instituições públicas não estão a educar para o bem.
Há uma ecologia adequada à criação e desenvolvimento de instituições de qualidade. Uns países têm essa ecologia, outros não. Nuns, as instituições de qualidade abundam, noutros são raras. Neste aspecto, a distância que nos separa de alguns outros países não é quantitativa, é qualitativa, por isso não é mensurável em anos ou qualquer outro género de estatística. Entre nós, a metáfora da “máquina”, dirigida centralmente, reflexo de um ambiente cultural ainda dominado por filosofias arcaicas e obsoletas de controlo, completamente inadequadas aos tempos da globalização, é dominante em relação à metáfora do “organismo” vivendo em ambiente de liberdade, em particular na organização do sistema de ensino básico e secundário. Claro que instituições com uma estrutura interna atomizada são mais facilmente controláveis e susceptíveis de serem desviadas para servir interesses de grupo, o que pode explicar muita coisa.
O ser humano, enquanto ser vivo, não se dá bem a viver em instituições estagnadas, semi-mortas ou mesmo mortas. Daí a preferência dos alunos e famílias pelas escolas privadas, que mesmo com todos os defeitos (em Portugal o sentido de responsabilidade social está pouco desenvolvido também entre os privados), devido à autonomia de gestão que resulta do seu estatuto, não têm em geral o mesmo grau de anquilosamento e conseguem ter melhor qualidade de ensino.
“Deixem que as instituições se auto-determinem” – poderia ser um bom slogan. Não há que ter medo da desordem. Como dizia Erich Jantsch; “The more freedom in self-organization, the more order”.
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