Ulisses não volta a Ítaca

Miguel Sousa Tavares
Expresso 2016.05.24

António Costa voltou de Bruxelas aliviado e satisfeito por ter ganho mais dois meses de suspensão de sanções pelo défice excessivo de 2015. Provavelmente ganhou até um ano de adiamento, sendo 2016 em definitivo o ano do “ou vai ou racha”. E vai? Ou racha? Ninguém sabe ao certo, nem o próprio António Costa. No planeta feliz em que ele vive, a previsão do défice para este ano é de 2,2%, mas, mesmo acreditando que não nos vai aparecer mais um Banif pela frente, já será uma sorte se conseguirmos ficar abaixo do limiar fatal dos 3%, que nunca conseguimos. Até porque não faltam outras oportunidades “extraordinárias” para derraparmos: a conta da resolução do Novo Banco, a capitalização da Caixa, a conta da TAP e da reversão das privatizações nos transportes metropolitanos de Lisboa e Porto. 
Mas tudo a seu tempo. Costa já mostrou que é um notável malabarista, capaz de dançar sobre um fio de arame e um fosso de leões. Caminha por pequenos passos, para a frente e para trás, sem preocupações em chegar ao fim são e salvo mas apenas em ir-se mantendo em cima do arame, um dia atrás do outro. António Costa é um extraordinário tacticista, um notável negociador, um temível jogador de xadrez. Mas jamais será um estadista: tem demasiada política dentro de si, demasiada conjuntura, demasiada habilidade para tal. A impensável coligação de poder que ele inventou a partir de uma derrota eleitoral é alimentada dia a dia por pequenas mentiras, pequenas recompensas, pequenos avanços e recuos que a vão mantendo a flutuar, com a ilusão, em que só os distraídos poderão acreditar, de que se está a governar. Porém, tal como Penélope e para manter os seus vassalos em eterna expectativa, ele, de facto, não governa, finge governar: desfaz de noite o que fez de dia, promete em Bruxelas o que garante não ir fazer em Lisboa. Com isso, ganha tempo, na espera do regresso do seu Ulisses. No horizonte, ele perscruta ansiosamente sinais de uma retoma económica vinda de fora que possa milagrosamente vir salvar o que resta das suas promessas eleitorais. 
Quem disse que estávamos arruinados? O país, os portugueses, podem estar, mas o Estado Português, não. Esse continua rico 
A aposta no consumo interno e no alívio da austeridade não era um má opção em si mesma. Mas desde que a economia arrancasse e o aumento do consumo não fosse todo absorvido por importações; desde que as exportações continuassem a crescer, pelo menos ao ritmo dos anos anteriores; e desde que o Estado compensasse a devolução de salários, pensões e apoios sociais com o corte efectivo e duradouro de despesas inúteis, gastos sumptuários e apoios desnecessários e fomentadores da ociosidade e da dependência. Mas nada disso aconteceu: Angola e a China fizeram regredir brutalmente as exportações; as empresas, descapitalizadas e sufocadas fiscalmente, não têm dinheiro para investir e alavancar a retoma do crescimento; e o Estado, para manter a coligação a flutuar, gasta e distribui o que não tem, não corta no seu próprio consumo e ainda nos arrasta para acorrer aos desastres de uma banca que se revelou uma ampla e notável escola de incompetentes e irresponsáveis. O Governo não é de esquerda nem de direita, não tem plano nem horizonte, apenas navega num limbo ideológico e num permanente processo de desenrascanço e adiamento de todos os problemas estruturais. 
Com a redução das taxas moderadoras, o aumento do salário mínimo e das prestações sociais, a reposição dos vencimentos da função pública e das pensões, com as 35 horas para o sector estatal, com a reversão de toda a exigência escolar e com o catálogo completo das causas fracturantes, a coligação entre socialistas e extrema-esquerda garante alguma popularidade, alguma paz social e o apoio dos “capitães de Abril”. Mas as causas profundas da nossa ruína, as razões pelas quais parámos de crescer desde o início do milénio, os factores que fazem com que o Estado gaste todos os anos mais do que tem, acumulando défices e aumentando dívida para as gerações subsequentes, tudo isso se mantém inalterável, apenas agravado dia a dia. E porque o Estado cobra em impostos 35% da riqueza de um país arruinado e gasta 52% do seu PIB, só não vamos ao fundo de vez porque o Banco Central Europeu nos empresta dinheiro barato e porque o Governo assalta a economia, aprofundando ainda mais o “brutal aumento de impostos” de Vítor Gaspar, de que em breve ainda teremos saudades. É verdade que não é para todos: é para os mesmos de sempre, os menos de 50% de portugueses que pagam impostos directos. Mas esses, por azar, são os que podem fazer arrancar a economia ou, pelo contrário, podem apenas ser sacrificados juntamente com ela pela voragem fiscal do Estado. É a célebre classe média — a que hoje, em desespero de cada vez mais receitas, já chamam ricos, para efeitos fiscais. 
Veja-se o caso do ISP, sobre a gasolina e o gasóleo. Com o petróleo a 30 dólares, a nossa débil economia encontrou uma tábua de salvação: menos despesas para as empresas, maior capacidade de consumo para os particulares e mais negócio para todos os que vivem dos passeios de domingo ou de fim-de-semana: hotéis, restaurantes, etc. Ah, mas se a economia respirava melhor, o Estado perdia receitas fiscais no ISP — (o que é uma coisa saudável: menos dinheiro para o Estado, mais dinheiro para particulares e empresas). Então, que faz o Governo? Sobe o imposto em seis cêntimos por litro, porque o nosso alívio à custa dele o incomoda. Mas quando o petróleo recomeça a subir e ultrapassa os 40 dólares, o Governo, contrariando a sua promessa, apenas nos devolve a esmola de um cêntimo: cinco cêntimos a mais já lá cantam e podem crer que para sempre. 
Outro exemplo: o aumento do IMI, que preparam afanosamente, depois do aumento geral recentíssimo levado a cabo com a actualização dos valores prediais. Agora, querem introduzir uma taxa progressiva, conforme o valor das casas, tornando o IMI outro IRS. Mas querem também penalizar mais quem tenha uma segunda casa, uma casa de campo ou de praia, uma casa comprada como investimento para aluguer ou simplesmente uma casa de família herdada. Isto revela bem a mentalidade de rapina do Estado: eles sabem que temos 14% de desempregados, que as empresas estão arruinadas, que não há financiamento e que o investimento está completamente estagnado. E sabem que um governo decente deveria incentivar a captação de poupanças e o investimento possível dos particulares. Deveriam estimulá-lo, mas preferem castigá-lo. É como se dissessem: “Ó meu malandro, então ainda te sobrou dinheiro depois de pagar os impostos todos e achaste que esse dinheiro era teu e que podias gastá-lo a fazer ou a comprar uma casinha, dando dinheiro a ganhar às empresas, ajudando a manter postos de trabalho e a não deixar morrer de vez o interior? E achaste que te safavas apenas pagando-nos IVA das obras, IMT na compra e um IMI igual aos outros? Pois, agora vais ver o que te vai custar não teres posto o dinheiro no Panamá!”. 
Este é o retrato do país, em 2016. A economia está paralisada, mas, de cada vez que ousa tentar sobreviver, cai-lhe em cima o Estado, sem piedade. E tão mais impiedosamente, quanto se trate de alguém que ousa tentar sobreviver sem ajudas públicas, sem contratos de favor, sem isenções fiscais, sem compadrios. Não passa uma semana sem notícia de mais uma liberalidade do bom Governo que temos, representando mais uma despesa pública para o cardápio; e não há semana em que, correspondentemente, não seja anunciada nova ameaça fiscal. O paradigma pode ser dado pelo anúncio feito esta semana pela secretária de Estado da Educação sobre o destino a dar ao dinheiro que o Estado irá poupar, e muito bem, com o fim do apoio a algumas escolas privadas. Acham que esse dinheiro vai servir para engrossar a receita do Estado, diminuindo o défice e a dívida? Não, vai servir para dar manuais escolares gratuitos a todos. Quem disse que estávamos arruinados? O país, os portugueses, podem estar, mas o Estado Português não. Esse continua rico.

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