Não, António, as vacas não voam
JOÃO MIGUEL TAVARES Público 24/05/2016 - 07:52
Uma vaca voadora – e de repente ali estava, diante de nós, o símbolo perfeito do regoverno socialista. Todo o pensamento político do primeiro-ministro encapsulado numa bugiganga a pilhas comprada no aeroporto de Heathrow. Se não viram na televisão, vejam, por favor, porque António Costa a oferecer à ministra da Modernização Administrativa a vaca voadora na cerimónia do novo Simplex é, no seu cândido simbolismo vacum, o apontamento político mais esclarecedor do ano. O primeiro-ministro pegou na vaquinha por um fio de coco, carregou num botão e as asas da vaca leiteira começaram a bater alegremente, enquanto ele declarava, todo dentes e sorrisos: “Não há impossíveis! A prova é a de que até há vacas que voam!”
Podia ser apenas uma piada – mas não foi. Foi, isso sim, algo mais próximo do lapso freudiano. Munido de inesgotáveis pilhas e fé em gado alado, António Costa está a governar o país como se as vacas pudessem voar: contra todas as probabilidades e com uma dose bovina de pensamento mágico. Reparem, aliás, que o objecto em causa não só era vaca, como era leiteira. Até o adjectivo é revelador: “leiteira” no sentido popular de “sorte” e “fortuna ao jogo”.
Não, não estou a embirrar com o primeiro-ministro. Acredito profundamente na importância simbólica da sua vaca voadora, porque ela traduz uma característica fulcral da psique portuguesa, que nos marca pelo menos desde o milagre de Ourique: a crença numa intervenção sobrenatural como forma de ultrapassar dificuldades naturais. No tempo de D. Afonso Henriques, Deus intervinha pessoalmente nas batalhas, colocando-se ao lado dos justos – a independência de Portugal passou a justificar-se porque o próprio Senhor do Universo decidira interromper os seus afazeres galácticos para abençoar o jovem Afonso na luta contra os mouros. Já António Costa prefere entregar o papel de Deus a uma vaca voadora – Portugal não vai voltar a afundar-se nos mercados internacionais, apesar da acumulação de indicadores desfavoráveis e da aberrante coligação anticapitalista, pela simples razão de que não há impossíveis. As vacas voam!
O objectivo do bovino eléctrico é, afinal, o mesmo do milagre de Ourique, tal como é o mesmo do mito sebástico: transferir para os céus ou para o futuro a resolução dos nossos problemas imediatos. O voluntarismo português, que António Costa ilustrou com a sua vaca volitante, não é nunca uma tentativa de superação – é uma fezada, um desejo de milagre. Em todo o lado existem discursos motivacionais, mas o seu objectivo costuma ser o de convocar o povo para os sacrifícios que se avizinham, à maneira de Churchill: “Só tenho para oferecer sangue, suor e lágrimas.” Aquilo que sempre apreciei no discurso de Passos Coelho, Vítor Gaspar ou Maria Luís Albuquerque foi a ausência de paninhos quentes e a admissão de que era necessário fazer sacrifícios para que o país voltasse a ser credível cá dentro e lá fora.
Como se vê, esse discurso acabou, acusado de “colaboracionismo”. E entre as mais graves reposições de António Costa está precisamente essa mentalidade messiânica e parola, sempre em busca de um golpe de sorte que resolva a nossa vida por nós – olhem, até as vacas voam! Não, pá, não voam. E não precisamos que voem. O que precisamos, como dizia Natália Correia, é de espetar os cornos no destino. É duro, dá trabalho, mas mil vezes isso do que gastar a vida à procura de vaporosas manadas no céu socialista, com o país preso por um fio de coco.
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