Bora lá então falar da escola pública

João Taborda da Gama
DN 2016.05.15

Quando Catarina Martins disse que é preciso "defender a Escola Pública, a escola que é de todos", e denunciou escolas que recebem dinheiros públicos e que servem "a elite social e económica", pensei que estivesse e falar do Rainha D. Amélia, ou do Pedro Nunes, ou do Maria Amália ou da Secundária do Restelo, mas não, parece que falava de uns colégios em Coimbra.
A pata esquerda da geringonça decidiu pisar os contratos de associação (Costa já veio recuar, depois da intervenção de Marcelo, da FNE, e dos paizinhos dos colégios) e fazer grande espalhafato à volta do tema. Percebe-se: sem alijar eleitores (são 80 colégios...), o Bloco ataca, de uma penada, as negociatas do centrão político, a Igreja, os ricos, o sector privado, a falta de investimento no ensino público, demarca-se do PCP sempre mais institucional, encorna o PS à esquerda (encorna é uma tradução possível de to corner, encostar a um canto), e gera instabilidade no seio da família socialista e do próprio Ministério da Educação. Quando o que importava discutir era o que se pode fazer pela escola pública e retirar de positivo da experiência dos contratos de associação.
A coexistência na mesma zona, de escolas com e sem contrato de associação, que servem exatamente a mesma população, a tão badalada duplicação da capacidade instalada (numa redução da escola a reboco e metragem cúbica), é talvez, e paradoxalmente, um dos melhores efeitos da experiência dos contratos de associação. Permitiu no terreno, e não na Cinco de Outubro, ver o que preferem os pais. E os pais, que querem sempre o melhor para os seus filhos (bonito), escolheram as escolas com contrato de associação. Daqui podem retirar-se consequências diferentes, mas não se pode é fingir que isto não aconteceu. As consequências podem ser diferentes: desde manter tudo na mesma, a encerrar as escolas públicas e manter apenas aquelas que são as preferidas das famílias, ou acabar-se com os contratos de associação, mas melhorando a escola pública com as lições resultantes da experiência de coexistência.
E talvez seja este facto, a preferência dos pais, que mais irrita a esquerda, que prefere usar chavões sobre a escola pública do que torná-la naquilo que verdadeiramente deve ser: algo que crie e acelere oportunidades para os mais desfavorecidos. E isso só acontecerá quando houver mais autonomia para as escolas e as famílias possam escolher as escolas públicas que querem, retirando-se consequências responsabilizantes da autonomia e das escolhas. E não estou a falar do modelo atual em que só os ricos e influentes podem escolher a escola pública dos seus filhos, independentemente da residência. Estou a falar do filho adolescente de uma mãe desempregada do Vale da Amoreira que tem muito poucas hipóteses de fugir à escola da sua residência, que é das últimas dos rankings, porque não tem ninguém para jogar o desporto nacional do "dar a morada", nem tem uma amiga da mãe amiga de uma professora na escola melhor que dê um jeito na matrícula. A escola pública e as suas regras amarram-no ao Vale da Amoreira, e uma escola pública que reforça a guetização falha no seu principal objetivo. Isto só será mudado quando houver coragem para admitir que as regras de residência das escolas públicas se aplicam com mais rigor aos pobres, que têm menos cunhas e menos incentivos para procurar furar uma regra com pouco sentido.
Só uma muito maior autonomia das escolas permitirá projetos educativos diferentes que respondam a necessidades e aspirações diferentes - escolas mais exigentes do que outras, projetos centrados nas artes ou nas ciências, até escolas com recortes ideológicos e filosóficos assumidamente diversos, aliás como se passa no pré-escolar e, de certo modo, no ensino superior público.
Claro que é mais confortável continuarmos a achar que o problema são os oitenta contratos de associação, que não devia haver rankings, e que é possível um comando central e uniformizador das escolas, como faz a esquerda, que acha que a igualdade acontece cada vez que diz Escola Pública com maiúscula e ar compungido. Ou como certa direita defende, que tudo se resolve com a criação de um sistema alternativo profissionalizante, desde tenra idade, em compartimento separado, porque já se sabe, em Portugal queremos um bom eletricista e não se encontra um bom eletricista, e um bom eletricista pode fazer imenso dinheiro, não precisamos de ser todos médicos não é verdade, dizem a pensar no Martim da empregada e não no Martim lá de casa. E se a empregada for cabo-verdiana ainda mais falta fazem bons eletricistas. O estudo "Os afro-descendentes no sistema educativo português" recentemente publicado por Cristina Roldão e Pedro Abrantes, investigadores do ISCTE, que mostra que um aluno afro-descendente tem três a cinco vezes mais probabilidade de ser empurrado para o ensino profissional mesmo quando comparado com um aluno branco oriundo do mesmo contexto económico, já teria gerado clamor e uma séria investigação em qualquer país civilizado. Ah, claro, mas em Portugal não somos racistas, já me esquecia.
O meu dinheiro, o dinheiro dos contribuintes, deve ser usado para dar mais escolha a quem não tem, para construir uma escola pública diferenciada, autónoma, sem barreiras geográficas, avaliada, responsabilizada e responsabilizante, que não perpetue a pobreza, nem a exclusão, nem a discriminação. Mas isto é uma discussão que não interessa a ninguém, porque os miúdos do Vale da Amoreira têm uma escola igual à dos miúdos do Restelo. Com a vantagem de poderem vir a ser eletricistas. Excelentes eletricistas.
PS - Antes que alguém pergunte, tenho filhos no ensino privado
(laico e sem contrato de associação) e frequentei sempre o ensino público numa escola que no ranking do secundário do distrito de Lisboa ocupa o quarto lugar... a contar do fim.

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